20 fevereiro 2013

Teoria do Município II

Alexandre Herculano – Opúsculos, Tomo I, Edição de Joel Serrão, Livraria Bertrand, 1983.

"(…) Vinde cá, defensores do absolutismo, quem vos deu o direito de falardes desta nobre terra de Portugal nos tempos em que era livre?

(…) Em Portugal o despotismo é que é moderno, e a liberdade antiga. Cerrai de todos os olhos, vós que amais curvar-vos ante um senhor dos vossos bens e das vossas cabeças.

(…) Em que dia desceu este do céu (…) para ordenar aos seus escribas que rasgassem centenas de pactos constitucionais, onde estavam escritos os foros e liberdades desta terra; centenas de pactos municipais, onde estavam consignadas as liberdades e garantias das cidades e vilas do reino?

(…) Que eram os nossos parlamentos até 1480, senão as assembleias onde o povo protestava sempre, ameaçava não raro, e castigava algumas vezes cerrando as bolsas, as quebras do que, na linguagem imperfeita daquelas eras, chamava os seus privilégios, e que nós chamamos direitos e garantias políticas?

(…) No que era novo, nas medidas administrativas, ou nas leis civis que a civilização mostrava úteis ou justas, o povo limitava-se a discutir a sua conveniência; mas no que feria o pacto fundamental das cidades e vilas, ou aquela parte do direito consuetudinário, homologado conjuntamente com a carta municipal, e que representava direitos políticos, opunha-se tenazmente à inovação.

Assim, a liberdade popular estribava-se não tanto nos parlamentos como nos forais, e a garantia dos princípios contidos nestes era a estrutura robusta dos corpos municipais. Os concelhos eram a organização da democracia contra os poderosos, que só entravam nesses grémios políticos por concessões raras, condicionais, difíceis de obter, sobretudo nos tempos primitivos.

(…) a centralização tem-se tornado cada vez maior; de modo que o poder municipal, o mais vivaz, o mais activo, o mais popular de todos os poderes, tem perdido a maior parte da sua importância. Entre nós, por exemplo, onde esse poder fez prodígios, hoje não se faz ele sentir quase.

Aceitamos a designação de municipalista; aceitamo-la da boca da democracia. Toca-nos provar que o municipalismo, instituição tão antiga, tão permanente como as sociedades, embora enfraquecida e até anulada em várias épocas pelos diversos despotismos, vale infinita mente mais do que as aspirações democráticas; que ele nos oferece o único meio possível de mantermos a nacionalidade, ao passo que seria o mais poderoso instrumento de uma liberdade verdadeira, convertendo o Governo representativo, de uma imensa decepção, numa realidade prática.

(…) Mais exacto de ordinário nas suas expressões que as classes elevadas, ele fala muitas vezes na sua terra, nunca na sua pátria. É que a primeira palavra corresponde-lhe a uma ideia; é a tradução de uma coisa possível, compreensível, simpática para ele: a segunda representa-lhe uma coisa abstracta, vaporosa, vaga, que não diz nada nem à sua limitada inteligência, nem ao seu coração.

Considerado a outra luz, o município é também a fórmula de unidade, de simpatia, entre as moléculas sociais, entre a família e a família.

(…) Como o Evangelho se adapta a todas as civilizações, o município adapta-se a todas as organizações sociais. Ao passo que se definha e desaparece onde o despotismo da monarquia, ou o despotismo da democracia, chegaram à exasperação da demência, e deixaram de ser fórmulas de organização social...

(…) A centralização democrática não tem força para a fazer proferir heresias. A nacionalidade, dizeis vós, criou-se à sombra e sob o influxo da centralização! Como é isto? Portugal nasceu e constituiu-se no século xi; a centralização como vós a entendeis, mas menos exagerada, organizou-se nos fins do século xv e começos do xvi. A constituição da nacionalidade deveu-se toda à época municipal."

2 comentários:

Francisco Brito disse...


Creio que fará algum sentido partilhar este trabalho do Doutor Armindo de Sousa:

"O Parlamento Medieval Português":

http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/2222.pdf

Duarte Meira disse...


O texto do especialista Armindo de Sousa (oportunamente lembrado pelo comentador FB)é muito interessante: sem novidade factual relativamente ao que desde Herculano fora notado, não deixa de salientar uma feição politológica da maior relevância - a distinção entre autoridade e poder (deliberativo).

Uma distinção que não deve, contudo, ser forçada: foram as Cortes de Coimbra que impuseram D. João I como rei. (Mas já as de Almeirim, de 1579-80, não foram a ponto de impor algum dos três candidatos legais portugueses, o que não deixa de ser significativo de uma quebra da autoridade que, dantes, quando era preciso, não se desirmanava da força deliberativa. Já não vinham muito longe os tempos em que a Realeza cometeu o erro político fatal de prescindir da convocação das Cortes.)

O interesse da distinção feita por Armindo de Sousa é também relevante para a tese de Rui A., neste blogue, sobre a posição e função do rei.