02 abril 2012

Exclusão

No post anterior, procurei contrastar o discurso ideológico - liberal, neste caso - com a realidade, na pessoa de Thomas Jefferson. Resulta que o discurso ideológico é muito diferente da realidade. A minha questão neste post é a de procurar descortinar o que é que há de essencial e permanente no discurso ideológico, o que é que o discurso ideológico tem e que a realidade não tem, em que é que um e outro diferem?

Para mim, o interesse da questão reside no seguinte. Eu estou convencido que os males actuais da sociedade portuguesa - na economia, na justiça, na política, na sociedade em geral - se devem à importação de ideologias - principalmente a socialista e a liberal, mais a primeira do que a segunda - que não se conformam com a cultura católica portuguesa. É como se Portugal andasse vestido com fatos que não lhe servem. 

Para conhecer os remédios, é preciso, em primeiro lugar, identificar o mal, e por isso impõe-se saber qual o mal principal que as ideologias infligem aos portugueses. Que mal é esse que é a causa do desânimo generalizado, do descalabro económico, do sentimento de impotência cívica, do descrédito da justiça que hoje afecta os portugueses?

É para procurar a resposta a esta questão que volto agora ao Jefferson. Aquela proclamação que ele subscreveu acerca da igualdade e da liberdade de todos os homens é uma declaração admirável. A realidade, porém, é que ele não acreditava nela, certamente que não de forma inqualificada. Jefferson possuiu escravos até à sua morte, julga-se mesmo que foi pai de escravos, fez várias proclamações em favor do fim da escravatura, mas nunca libertou os seus - à parte meia dúzia de casos isolados e em resultado de relações de família.

Jefferson subscreveu leis que proibiam a importação de escravos em vários Estados americanos, incluindo o seu, mas estas leis não tinham em vista acabar com os escravos, porque ele nunca libertou os seus. Eram leis que visavam restringir a oferta de escravos, e portanto aumentar o seu preço, valorizando o património pessoal de Jefferson e de outros donos de escravos como ele. Jefferson acreditava que os escravos deviam ser tornados livres - mas não no seu tempo, já que essa era uma decisão política muito complexa e cuja resolução ele preferia deixar às gerações futuras. Jefferson nunca executou a vontade testamentária de um amigo que lhe deixou uma fortuna para ser utilizada na compra da liberdade de escravos, e ajudou os franceses no Haiti para impedir o triunfo de uma revolta de escravos.

O que é que Jefferson pensava, afinal, dos escravos e como é que ele reconciliava a escravatura com aquela admirável proclamação de princípios que subscreveu na Declaração de Independência? Primeiro, ele considerava que os escravos deviam ser livres - embora não os seus nem no seu tempo. Segundo, ele defendia que logo que se desse a liberdade aos escravos, no mesmo dia eles fossem metidos em embarcações que os devolvessem à sua terra de origem - África. Na visão fundadora dele, a América era para homens brancos.

A esta luz, a Declaração de Independência subscrita por Jefferson torna-se agora inteligível. Todos os homens nascem livres e são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, como a Liberdade - excluídos os escravos. Excluídos os escravos na América. Pois, em relação aos escravos, ele também considerava que todos eles nascem iguais e livres - mas somente lá na terra deles.

Exclusão é o que o discurso ideológico esconde.  


16 comentários:

Luís Lavoura disse...

George Washington declarava que os ameríndios eram "lobos sob a pele de homens".
Também ele acreditava que os homens são todos iguais - exceto, claro, os ameríndios, que de facto nem homens eram, mas sim lobos disfarçados.

Ricciardi disse...

Nao se pode julgar alguem do passado ah luz dos valores de hoje.
.
Enfim, há uns bons anos atras levei uns amigos holandeses para a pesca no rio de Castro laboreiro. Fui no carro deles. Um volvo, bem me lembro. Os gajos acharam estranho eu, no banco de trás, nao colocar o cintura de segurança. Foram o caminho todo a dizer para colocar o cinto, e eu achava estranho que eles, a frente, o usassem. A meio do percurso comi uma maca e atirei-a borda fora, pela janela. Ficaram horrorizados.
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Rb

Vivendi disse...

Concordo com o Ricciardi!

E nunca se sabe as pressões da altura, que tal como hoje ainda se deixa de fazer a coisa certa, ás vezes mesmo indo contra a vontade e valores de quem está no poder.

Pelo menos Thomas Jefferson fez a inclusão pelo lado da procriação.

Vivendi disse...

Política é a disputa de poder não é uma disputa de ideias.

No fundo a ideologia é apenas o traje que se apresenta à sociedade na tentativa de conquistar o poder.

Fernanda Viegas disse...

Concordo Prof. Que grande patife era o Jefferson. Temos aqui o exemplo acabado do olha p'ro que eu digo e não olhes p'ro que eu faço.Ricciardi, o Jeff. defendeu o fim da escravatura, no seu tempo. Os valores eram dele, à sua época.Não me parece que se esteja a julgar alguém do passado, à luz dos valores de hoje. Vivendi, se ele fez a inclusão pelo lado da procriação, fez mal, devia ter sido exceção. Isso era o que faziam todos os senhores de escravos.

Pedro Sá disse...

Por essa ordem de ideias o catolicismo também é uma ideologia, e assim sendo também esconde a exclusão...desde logo dos não crentes, basta ver o recorrente discurso da libertas ecclesiae...

Ricciardi disse...

Naaa o catolicismo nao eh ideologia, ou melhor, pode ser qualquer uma, de acordo com o que os lideres da igreja vão percepcionando as necessidades do mundo. Eh uma das coisas que gosto na igreja e na qual me revejo, que eh nao ter complexos de ser socializante quando eh preciso e ser liberalizante quando for preciso. A medida das doses nao eh ideologiopco, e portanto abstracto, mas sim realista, e portanto pragmática.
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Rb

Anónimo disse...

"Olha para o que eu digo, não para o que eu faço" é uma das maiores tradições católicas portuguesas.

José Lopes da Silva disse...

A figura/posição de Jefferson está explicada, mas na verdade não creio que isso comprometa definitivamente a assunção da primeira frase da declaração de independência norte-americana.
É precisamente o facto de Jefferson deixar a questão para as gerações futuras que nos pode levar ao outro lado da questão. Claro que Jefferson não foi Cristo nem deu a vida para salvar a humanidade. Mas os valores iluministas foram como que um veneno que corroeu a ideia mesma de estado WASP que todos os fundadores partilhavam. Até que ponto isso foi, ou não, intencional? Se não foi intencional, não se salva esta ideologia capaz de produzir consequências que escapam aos seus defensores?

José Lopes da Silva disse...

Eu costumo pensar que, antes da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1790?), o primeiro a dizer "todos os homens são iguais, nem homem nem mulher, nem homem livre nem escravo, nem grego nem bárbaro, nem judeu nem gentio," foi Cristo, e que portanto a tradição católica é a legítima antecessora desse movimento iluminista - mesmo que o conjunto do iluminismo fosse construído contra a igreja. A sociedade WASP de 1776 tem vindo a sofrer com este germe católico: sofreu uma guerra civil que foi ideologicamente inspirada por este princípio que Jefferson negava para si mesmo; 100 anos depois continuava a ter problemas do mesmo género; e hoje continua a sofrer pressões para que exista igualdade - só lhe falta o elemento católico para que a igualdade seja mais do que perante a lei. (e ele está a crescer.)

Harry Lime disse...

Estas postas do PA caem no erro tipico destas coisas: tenta-se julgar os homnes de ontem 'a luz dos valores de hoje.

E' evidente que o Jefferson tinha escravos e que o Washington nao gostava de indios.. E depois? Naquele tempo estas posicoes eram perfeitamente aceitaveis. Querer que eles fugissem a crencas muito comuns na eopa e' pedir que ele fossem santos. Nao eram santos!!!

No entanto, numa epoca em que o racismo, a discriminacao e a exploracao eram a regra, eles permitiram-se ter uma visao mais progressista.

Rui Silva

Harry Lime disse...

Agora tambem gostav de saber qual era a posicao dos Catolicos nesse tempo.

Que eu saiba apenas o Padre Antonio Vieira (um jesuita, logo segundo a classificacao esquizofrenica do PA, um "protestante") se levantou contra a escravidao.

De resto, os catolicos mantendo a coerencia entre as suas palavras e as suas accoes foram os ultimos a abolir a escravatura (no Brasil nos anos 80 do sec. XIX, quase 20 anos apos o final da escravatura nos EUA).

Podemos dizer que Washington e Jefferson eram hipocritas mas a verdade e' que apesar da sua hipocrisia (ou por causa dela) as coisas moveram-se mais depressa no sentido certo nos EUA do que por exemplo no Brasil (o equivalente catolico dos EUA).

Rui Silva

manel z disse...

Mas Jefferson libertou vários dos seus escravos...

Vivendi disse...

Após a análise correta de vários comentadores gostaria de desviar a atenção para a parte mais pertinente do post de Pedro Arroja, o último parágrafo, aí tem total razão.

"Exclusão é o que o discurso ideológico esconde."

A ideologia está sempre pronta para deixar alguém de fora.

Harry Lime disse...

Vivendi,

A ideologia e' como a arte: e' uma mentira que nos ajuda a ver a verdade.

O liberalismo deixa excluidos, sim senhor. E nao e' perfeito. Mas o essencial e' que deixa menos excluidos do que as ideologias anteriores.

E, nao sendo perfeito (muito longe disso!), e' uma ideologia mais justa do que estas. Incluindo o "catolicismo" do PA, uma especie de Maurrasianismo requentado a que ja ninguem liga ha' mais de 50 anos e que o PA descobriu agora com grande pranto e grande admiracao.

Rui Silva

Vivendi disse...

Harry Lime,

Pedro Arroja foi alguém que chegou ao topo, na iniciativa privada, no ensino e até podia concerteza ter entrado facilmente nos jogos de poder.

Mas mesmo obstante esse sucesso acumulado, dentro dele surge a necessidade espiritual, um forte sentido de comunidade e de amor pelo próximo, a tentativa de construir uma sociedade melhor.

O integralismo leva-nos para uma época onde a estrutura moral da sociedade era mais elevada do que a de hoje. Porque não recuperar os melhores aspetos e virtudes desse tempo?

O maior problema da igreja ou qualquer outra religião não está nos seus fundamentos primários, mas sim nas errâncias praticadas pelo homem em nome de uma suposta religião.

O liberalismo está numa fase em que se encontra incompleto e pode até cair no vazio e excluir cada vez mais pessoas.

Assim é sempre melhor tentar completar com aquilo que já conhecemos (aperfeiçoando os métodos) do que avançar com modelos desconhecidos.

Já nos projetos revolucionários, por norma acabam sempre com assassínios em massa.


cumprimentos.