Num post anterior afirmei que num país de tradição católica, como é Portugal, a passagem de um regime democrático para um regime anti-democrático é muito rápida, e usei a analogia de um edifício. Quando o edifício democrático rui já não há democratas lá dentro. A inversa também é verdadeira, a passagem de um regime anti-democrático para um regime democrático é feita a uma velocidade igualmente alucinante. No próprio dia em que o edifício democrático é erguido, já está cheio de democratas. (Em ambos os casos, um certo número de excepções deve ser considerado, as excepções constituindo a única regra de uma cultura tradicionalmente católica).
O segundo caso aconteceu mais recentemente no 25 de Abril de 1974. Depois de 48 anos de um regime em que os partidos políticos estiveram proibidos, a liberdade de expressão coartada e a discussão política activamente desencorajada, a esmagadora maioria dos portugueses tornou-se democrata num só dia. A revolução começou pouco depois da meia noite já a 25 de Abril, e o regime cessante não ofereceu qualquer oposição. Na manhã desse dia, em lugar de se trocarem tiros nas ruas de Lisboa e no resto do país, trocavam-se cravos. Todos os portugueses se tinham tornado democratas da noite para o dia. (Não voltarei a mencionar que a expressão "todos" envolve sempre um pequeno número de excepções).
O 28 de Maio de 1926, que pôs fim a um regime militantemente democrático e inaugurou uma ditadura militar, foi ainda mais emblemático. O Marechal Gomes da Costa fez uma viagem de 10 dias, desde Braga até Lisboa, como se fosse uma viagem turística. Parou em algumas cidades, às vezes por mais de um dia, como o Porto, Coimbra e Santarém como que a pedir aos democratas que porventura ainda estivessem na estrada o favor de se afastarem do caminho. Entrou em Lisboa aclamado por uma multidão - de anti-democratas, bem entendido. Os democratas tinham desaparecido, em massa, como que por milagre, para só voltarem a aparecer - embora não os mesmos -, também em massa e como que por milagre, numa manhã de Abril quase 48 anos depois.
Como explicar esta extraordinária capacidade dos portugueses para se tornarem, em massa, democratas de um dia para o outro e para deixarem de o ser, também em massa e também de um dia para o outro? É a sua cultura. Os democratas de Abril não eram, na sua esmagadora maioria, os mesmos da I República, as pessoas eram diferentes, mas a cultura era a mesma. E a cultura pesa mais do que as pessoas porque as pessoas são, em primeiro lugar, um produto da sua cultura ou tradição.
A democracia é uma ideologia que apareceu na modernidade em duas variantes - a democracia liberal e a social-democracia - e a cultura católica não acredita em ideologias. Para a cultura católica todas as ideologias são falsas. Uma ideologia é um sistema de ideias que se pretende impôr à realidade, às vezes nem que seja à força, ou a martelo. Para os portugueses, uma ideologia é assim como um relogio falso que se usa enquanto estiver na moda e não se avariar, mas que se deita prontamente fora logo que passe de moda ou se avarie. É esta a relação que os portugueses têm com a democracia.
Para a social-democracia ou socialismo democrático, que teve origem na Alemanha, a verdade está nas ideias, enquanto que para a democracia liberal, que teve origem na Grâ-Bretanha, a verdade está nos factos. Ora, a tradição católica considera que a verdade está na realidade. Em consequência, para a ideologia socialista a principal função do espírito é produzir ideias, para a ideologia liberal é interpretar os factos, enquanto que para a doutrina católica a principal função do espírito é adaptar-se à realidade. E é isso que os portugueses fazem.
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