Quando o Afonso Costa, no início do século passado, perseguiu a Igreja e quis expulsar os padres, houve um pequeno detalhe - na realidade, uma aparência - que lhe escapou e lhe estragou os planos e que foi magistralmente observado pelo falecido Martin Page, no seu livro "A Primeira Aldeia Global".
O Afonso Costa convenceu-se que, pelo facto de os portugueses frequentemente dizerem mal dos padres e terem comportamentos anti-clericais, não gostavam dos padres. Enganou-se. os portugueses não podem passar sem os padres. E quem acabou fora do país não foram os padres, mas o Afonso Costa.
Os padres fornecem aos portugueses não apenas os elevados padrões de comportamento que o povo português, no íntimo, considera que ele próprio deveria ter, como exoneram o povo de certas actividades que ele considera penosas, permitindo-lhe consagrar a vida àquilo que ele realmente gosta - gratificar o corpo. Ler ou estudar a Bíblia? Para isso estão lá os padres. Ajudar o próximo? É para isso que os padres existem. Abstinência ou contenção sexual? Isso é de padres. Meditar ou rezar? Isso é para os padres.
O padre é a figura de elite que o povo português gostaria de imitar e, não o conseguindo, por vezes revolta-se contra ela. Daí os episódios de anti-clericalismo que, volta-não-volta, ocorrem na sociedade portuguesa. O povo português não pode passar sem os padres porque, sem eles, não saberia como comportar-se, e menos ainda governar-se, e seria ele próprio chamado a desempenhar actividades e tarefas - como as de ler a Bíblia, estudar e trabalhar gratuitamente - que ele não está habituado a fazer, não tem vocação para fazer, e não gosta de fazer. Por outro lado, o povo ressente os padres porque eles representam um padrão ao qual ele não consegue ascender.
A relação entre o povo e os padres, entre o povo e a elite, é uma relação que vive numa tensão permanente, exactamente como uma relação entre uma mulher e um homem. Às vezes, ela detesta-o e desejaria pô-lo fora de casa, mas sabe que sem ele nunca será fecunda e nunca será ninguém. Acaba sempre a dizer-lhe, como o Herman na charla: "Volta que estás aperdoado".
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