08 maio 2011

a relação com a autoridade

A relação que os portugueses têm com a autoridade é semelhante à relação que têm com Deus, que é a autoridade suprema. A primeira característica desta relação é que há de tudo, é possível encontrar em Portugal pessoas que mantêm com a autoridade todos os graus ou tonalidades possíveis que esta relação pode revestir. Por isso, talvez seja melhor começar pelos extremos dessa relação, para depois caracterizar a relação normal.

A autoridade é uma valor da elite, e que se encontra de forma paradigmática no clero, acima de todos na figura do Papa. Associado ao valor da autoridade, encontra-se um outro valor que é típico da elite - o sentido da hierarquia. No outro extremo da distribuição, na franja mais baixa do povo, o valor prevalecente é exactamente o seu oposto, a extrema permissividade, com a sua tendência para aplanar todas as diferenças humanas. A grande massa do povo vive no centro da distribuição, dilacerada entre estes dois valores extremos, entre a autoridade e a permissividade, entre a hierarquia e a anarquia.

Quando prevalecem os valores da elite na sociedade, Portugal tem o aspecto de uma sociedade ordenada, diligente, obediente, e todas as suas instituições parecem modelos de organização. Pelo contrário, quando prevalecem os valores do povo, Portugal tem o aspecto de uma sociedade caótica, desordenada, negligente, indisciplinada. No início dos anos 90, uma delegação da Organização Mundial de Saúde veio a Portugal visitar hospitais. No final, um dos membros da delegação comentou: "Os vossos hospitais parece que vivem em clima permanente de guerra civil". Por detrás desta aparência caótica, a realidade, porém, é que os hospitais funcionavam.

Para o português mediano, esta abrangência e variância de valores, este extremisno radical que a sua cultura lhe oferece, por um lado, a autoridade e a hierarquia extremas do clero, pelo outro, a permissividade e a anarquia extremas de certa camada do povo, deixa-o desconcertado, e é a principal responsável pela sua proverbial falta de julgamento, pela sua radical incapacidade para julgar -, talvez o maior defeito de um povo de cultura católica. Ele olha para a Igreja, onde prevalecem ao extremo os valores da autoridade e da hierarquia, e vê que ela funciona. Ele olha para a forma como vivem certas camadas do povo, geralmente as mais baixas, às vezes até certas instituições populares, onde prevalecem ao extremo os valores opostos da permissividade e da anarquia, e vê que elas funcionam também. Então, como decidir, autoridade ou permissividade, hierarquia ou anarquia?

Não decide, fica paralizado. Não sabe como decidir, se pelo valor da autoridade se pelo da permissividade, se pela hierarquia ou pela anarquia. É esta incapacidade de decisão que, de resto, o caracteriza como povo, porque o homem de elite sabe perfeitamente decidir entre valores opostos. O povo vê vantagens e benefícios nos dois sistemas opostos de valores, e não toma partido, sente-se incapaz de escolher, sempre na esperança de poder beneficiar do melhor dos dois mundos - uma esperança que é tipicamente popular, mas que é uma impossibilidade prática.

Sentindo-se incapaz de decidir, o português típico lida com a autoridade de uma forma pragmática, o que geralmente significa interesseira, e portanto dissimulada. Ele valoriza a autoridade se ele próprio fôr a autoridade, ou se a autoridade lhe satisfizer as vontades e os caprichos. Não o fazendo, ele despreza a autoridade, acha que a autoridade não é precisa para nada, e tem razão, porque todos os dias se cruza na rua com pessoas que vivem sem autoridade nenhuma. E conseguem viver, desenrascam-se. Esta relação interesseira entre o português mediano e a autoridade confere à relação um aspecto muito curioso, que é a do respeito aparente. O português é sempre extraordinariamente respeitoso perante a autoridade, porque espera sempre dela um benefício, e certamente que não a adversidade. Mas como é normal na cultura católica, é só aparência. Ele está pronto a desprezar a autoridade no primeiro momento em que ela não lhe satisfaça as vontades e os interesses, e a desenrascar-se na vida à revelia da autoridade, porque é isso que fazem muitos outros portugueses que ele conhece.

"Eu vim aqui, Senhor Secretário de Estado, falar com Vossa Excelência para lhe pedir a subida fineza de me conceder uma licença para ...". À saída, desolado, diz para o amigo que o esperava à porta, ansioso: "Olha, aquele filho da puta, aquele cabrão, diz que a concessão de licenças está suspensa por dois anos..." .



Sem comentários: