23 maio 2011

a ralé

Portugal não é uma sociedade que se possa definir de uma vez por todas, porque está sujeita a oscilações entre extremos muito amplos. Neste sentido, é uma sociedade capaz do melhor e do pior, ou de qualquer ponto intermédio. E isto é assim porque os próprios portugueses, ao contrário da aparência exterior, não formam uma população homogénea. A variabilidade interpessoal é enorme, não na aparência física, mas na realidade espiritual.

Num extremo existem pessoas que perfilham um conjunto de valores que as caracteriza como elite. No outro extremo, existem pessoas que possuem uma combinação de valores que é exactamente oposta - a plebe ou a ralé. A maior parte dos portugueses possuem combinações de valores que se situam entre estes dois extremos opostos, e que constituem a grande massa do povo, uns aproximando-se mais da elite, outros mais da ralé.

Os valores da elite são os valores de Cristo - o homem de elite por excelência da nossa civilização - e que são aproximados pelos valores do padre católico, que é uma réplica de Cristo. Os principais são os seguintes: virilidade, autoridade e sentido de hierarquia, independência, sentido de verdade e de justiça, realismo, amor-próprio e confiança em si próprio, responsabilidade, generosidade e altruísmo (o valor cristão do amor ao próximo ou caridade), racionalidade, religiosidade, capacidade de abstracção, sentido de futuro. Os valores da ralé são exactamente opostos: frouxidão, permissividade e tendência para anarquia, dependência, falta de julgamento e de amor à verdade, egoísmo, tendência para o fantasismo, falta de amor-próprio e de confiança em si próprio, irresponsabilidade, emocionalidade, irreligiosidade, concentração excessiva no concreto e no presente (isto é, no aqui e no agora).

Antes de prosseguir, uma observação é devida. Um homem de elite e, no outro extremo, um homem da ralé, definem-se, não pela sua condição de nascimento, mas pela combinação de valores que perfilham. Um homem pode nascer no povo e tornar-se um homem de elite e, na realidade, a maior parte dos homens de elite nasceram do povo. Pelo contrário, um homem pode nascer numa família de elite e tornar-se povo e, no limite, ralé.

Não é difícil imaginar o que seria uma sociedade constituída só por pessoas de elite. Seria uma sociedade justa, próspera, responsável, racional e progressiva. Pelo contrário, não é difícil também imaginar aquilo que seria uma sociedade constituída apenas pela franja mais baixa do povo, a ralé. Seria uma sociedade onde a vida seria muito difícil, senão mesmo impossível: pobre, anárquica, emotiva, irresponsável e injusta.

Nos últimos trinta anos em Portugal, com a democracia, que é o governo do povo, a sociedade portuguesa afastou-se dos valores da elite e aproximou-se dos valores do povo, os quais, no limite, são os valores da ralé. A situação em que Portugal se encontra presentemente é o reflexo desse movimento. A democracia nunca sobreviveu em Portugal porque é impossível defender a bondade dos valores do povo sem os levar ao extremo. Não se pode gostar de algo ficando a meio. E quando os valores do povo são levados ao extremo, cai-se nos valores da ralé, tornando a vida em sociedade impossível.

Os países protestantes conseguiram sobreviver estavelmente em democracia, porque a Reforma protestante, e o movimento político e filosófico da modernidade que se lhe seguiu, fez duas coisas que ficaram por fazer nos países que permaneceram católicos, como Portugal. Proibiu os padres mas também proibiu a ralé, eliminou os extremos da distribuição, e assim tornou a sociedade mais igualitária. E isso, ao contrário das aparências, foi conseguido restringindo a liberdade individual, e não aumentando-a.

A variabilidade interpessoal - que é talvez a medida mais adequada da liberdade individual numa sociedade - permaneceu muito mais elevada nos países de tradição católica do que nos países sujeitos à influência do protestantismo. É mais fácil ser um padre católico em Portugal, imitando Cristo, do que na Dinamarca ou na Finlândia. E também é mais fácil ser um genuíno plebeu em Portugal, sem trabalho e sem valores, vivendo numa barraca sem condições de segurança e de higiene, do que em qualquer desses países.

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