04 maio 2011

imperturbável

A religiosidade verdadeira é uma característica da elite nos países de tradição católica. Pelo contrário, a religiosidade aparente é uma característica do povo. Em termos práticos, o que significa esta diferença, em que é que se traduz a religiosidade verdadeira e a religiosidade aparente? A resposta é que a primeira é generosa e altruísta, ao passo que a segunda é interesseira e egoísta.

A religiosidade verdadeira encontra-se entre os padres e a elite civil. O padre católico é a encarnação de Cristo, e compete-lhe pregar e praticar todos os valores que Cristo defendeu. Entre eles, o principal é o amor ao próximo ou caridade, a entrega aos outros, colocando os outros num plano igual ou superior àquele em que ele se coloca a si próprio. Por isso, a característica distintiva do verdadeiro cristão é a generosidade ou o altruísmo.

Muito diferente é a religiosidade popular, embora reconhecendo que existem muitas gradações desta religiosidade entre o povo. O povo é religioso por interesse, a religião serve para o povo pedir alguma coisa a Deus, para si e para os seus. Embora a verdadeira religião não exclua as preces, especialmente quando eleas são feitas para os outros, a verdade é que ela não se reduz a esta relação essencialmente egoísta e interesseira. Um pequeno exemplo falará melhor do que mil palavras.

Eu tenho um amigo, já com uma certa idade, que me conta muitas histórias acerca da mãe, já falecida há muitos anos, mas que ainda hoje exerce uma influência decisiva e fascinante sobre ele. Eu escuto sempre essas histórias com imenso interesse e respeito. O português típico fala por histórias, e está no seu melhor a falar por histórias - histórias em que ele próprio, ou algum dos seus, é invariavelmente o herói. Neste caso, a heroína é a mãe. Um dia, perguntei-lhe se a mãe era uma pessoa religiosa. Ele respondeu-me que sim, e muito. Mas só até ao dia em que, num curto período de tempo, lhe morreram quatro filhos por tuberculose. A partir daí, deixou de o ser.

Esta é a religiosidade tipicamente popular num país de tradição católica. É uma religiosidade egoísta, que só existe enquanto Deus me satisfizer as vontades, e em que sou eu próprio a definir os termos da relação. No dia em que ele não me satisfizer algum pedido que eu considere particularmente importante, deixo lhe Lhe ligar, e a relação fica quebrada. É uma religiosidade meramente aparente e que não tem nada que ver com a verdadeira religiosidade. O verdadeiro homem religioso aceita, imperturbável, os desígnios de Deus.

Quando o povo lida com Deus nesta base interesseira e egoísta, mais depressa lida assim com as pessoas. O povo dos países de tradição católica é, por isso, um povo interesseiro e profundamente egoísta, e isso torna-o radicalmente impreparado para viver em democracia. Durante muitos anos eu próprio me interroguei porque é que o espírito público que eu vi exprimir-se tantas vezes num país protestante e democrático não existia de igual modo em Portugal. Ultimamente, é o Ricardo que se indigna mais frequentemente, neste blogue, com essa ausência de espírito público entre os políticos e outros homens públicos portugueses.

A razão é que o povo português - e mais geralmente, o povo dos países de tradição católica - é radicalmente egoísta. Ele não está preocupado com o bem dos outros, está preocupado em primeiro lugar, e às vezes exclusivamente, com o seu próprio bem. Por isso, não se pode pôr, como faz a democracia, propriedade pública nas mãos do povo, e a ser governada pelo povo, porque ele não a vai utilizar no interesse público, vai utilizá-la principalmente em seu benefício privado. E isto não depende de ele se chamar José, Pedro ou Paulo. Depende de ele ser povo.

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