11 maio 2011

a igreja do diabo

A boa nova aos homens
Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula
beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e
extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus
discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava
que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e
desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.
— Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos
soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza,
a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil e airoso.
Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro,
fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...
Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes,
congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo
passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de
negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras
cínica e deslavada.
Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as
naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a
avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe
era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero;
sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de
Peleu..." O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos
bons versos de Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de
Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de
lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela
virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares,
em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo
prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução
direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do
mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de
propriedades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio
talento.
As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes
de eloqüência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as
perversas e detestar as sãs.


A Igreja do Diabo, Machado de Assis (Texto integral em PDF)

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