A visão de Portugal - especificamente do povo português, que não da elite - como uma figura de mulher permite lançar luz sobre um certo número de características permanentes na sociedade portuguesa, e que não são compreensíveis de outro modo.
Portugal não é um país propício à gratificação do espírito. Sendo um país católico, portanto universal, ele tem de tudo, e existem também no país locais onde é possível levar uma vida entregue às coisas do espírito. Mas são nichos, e estão escondidos do povo, porque o povo é largamente avesso às coisas do espírito. Se o povo descobre e invade esses locais, destrói-os. Os Conventos parecem-me ser um desses locais, e a Universidade também já foi, até ao momento em que o Marquês de Pombal resolveu tirá-la à Igreja, e entregá-la ao povo.
Portugal não é um país propício nem ao cultivo da filosofia nem da ciência, e nisso faz justiça à sua natureza feminina. Não existem mulheres na história da filosofia Ocidental, e, mesmo na história da ciência, só existem como excepção. São actividades predominantemente masculinas. Nem mesmo existem grandes teólogos portugueses, apesar de Portugal ser um país profundamente católico. A razão é que, mais do que todas as outras actividades do espírito, a teologia é a mais distintamente masculina, e Portugal é uma figura mulher. Especular sobre Deus é uma actividade de homens, não de mulheres. É claro que em Portugal se cultiva alguma teologia, mas não se vê, não vem a público, está escondida nalguns desses nichos que são geralmente instituições da Igreja.
As únicas actividades do espírito que encontram um solo razoavelmente fecundo em Portugal são aquelas que exprimem sentimentos ou atitudes que são predominantemente femininas, como o amor, a imaginação e a fantasia. Refiro-me, em primeiro lugar, à literatura, especialmente a poesia e o romance, e secundariamente às artes.
Quem queira ser poeta, romancista ou artista pode acolher-se em Portugal porque encontra terreno fértil, embora a pequena dimensão do país dificilmente lhe permita tornar-se mundialmente conhecido. Neste caso, a Itália, a Espanha, ou mesmo o Brasil, oferecem-lhe as mesmas condições de fertilidade e um mercado muito maior. Pelo contrário, quem queira ser filósofo, sociólogo, economista, politólogo, químico, físico, biólogo ou teólogo, o melhor é emigrar para um país do norte da Europa, ou da América do Norte.
Mas, então, em que é que Portugal é propício, se não é propício às actividades de gratificação do espírito, à parte as excepções indicadas? Portugal é propício a todas as actividades de gratificação do corpo - gratificação do corpo que é uma tendência muito mais feminina do que masculina. São as mulheres, muito mais do que os homens, que se entregam aos cuidados do corpo.
Num post recente, mencionei uma gratificação do corpo em que Portugal é exímio - o clima. Não é apenas o clima de Portugal Continental. É o clima dos Açores e da Madeira, é o clima de todos os lugares onde os portugueses se fixaram, a tal ponto que eu estou hoje convencido que não existe povo que melhor saiba escolher climas do que os portugueses.
Dei-me conta desta realidade quando há cerca de ano e meio estava em Salvador da Baía, a primeira capital colonial do Brasil. O dia tinha estado quente, embora não intolerável. À noite, soprava uma brisa refrescante da baía que tudo amenizava. Lembrei-me logo do Rio, a segunda capital colonial, para onde segui viagem, talvez a cidade com o melhor clima do mundo.
Salvador da Baía, Rio de Janeiro, Luanda, Lourenço Marques - todas capitais coloniais portuguesas, todas servidas por uma baía, todas com clima quente amenizado à noite pela brisa fresca da baía. No ano anterior, em Junho, ao passear à noite no Funchal, junto ao mar, reparei na temperatura - não estava nem um grau mais nem um grau menos do que a temperatura ideal ao ser humano. Recordei então aquele meu amigo que nos anos sessenta tinha ido combater para Angola. "Ao abrirem-se as portas do avião, e ao sentir no rosto pela primeira vez o clima de Luanda - disse-me ele, muitos anos mais tarde - parecia que tinha regressado de novo ao ventre da minha mãe".
Mas será só o clima? Não, há muito mais que Portugal tem para oferecer à gratificação do corpo. A gratificação do corpo, essa é que é a característica principal da cultura popular portuguesa, porque é generalizada. A gratificação do espírito, pelo contrário, também existe em Portugal, mas é como excepção, não faz uma cultura, é uma subcultura de elite, só existe em nichos.
Quando eu era adolescente frequentava uma barbearia em Lisboa, que tinha dois barbeiros, ambos na casa dos trinta e tal, quarenta anos. Como se sabe, em Portugal, os barbeiros, a par dos taxistas, são os porta-vozes por excelência da filosofia e da opinião popular. Havia um deles que estava sempre a dizer a mesma coisa, numa espécie de refrão. Aquele refrão sempre me intrigou - a tal ponto, que ainda hoje o relembro -, talvez porque nunca consegui concordar inteiramente com ele. Hoje, vejo-o a outra luz, como a expressão clara e distintiva da cultura popular portuguesa, que é uma cultura de gratificação do corpo. Dizia ele, para quem o queria ouvir, e repetindo até à exaustão: "Só existem quatro coisas boas na vida: comer, beber, dormir e ...". Para quem se interrogue sobre a quarta, eu dou uma ajuda: são todas gratificações do corpo. Não é nem estudar, nem meditar, nem poupar, nem pensar, nem trabalhar, nem rezar, nem nada terminado em ar.
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