Há dias o Joaquim referiu-se ao Quim Barreiros e à sua participação nas festas de estudantes universitários em Portugal. O tom era de surpresa. A mesma surpresa que eu tive quando há meses, depois de ter afirmado que gostaria um dia de assistir a um espectáculo do Quim Barreiros, um jovem licenciado me disse que estava farto de assistir a exibições do Quim Barreiros nas festas da Queima das Fitas. Eu nem podia acreditar: o Quim Barreiros em festas da Queima das Fitas?
A minha surpresa e a do Joaquim têm provavelmente a mesma origem. É que nos nossos tempos de estudantes universitários seria impensável ter o Quim Barreiros numa festa de universitários.
Eu tenho apreço pelo Quim Barreiros - a tal ponto que desejo assistir a um espectáculo dele - porque ele é o genuíno cantor popular português, e o mais castiço, e o povo português tem imensas qualidades. O bigode, o acordeão, a cara estanhada, e o humor brejeiro produzido com o ar mais sério deste mundo fazem do Quim Barreiros uma figura distinta e popularmente portuguesa. Como me referia o jovem licenciado, o Quim Barreiros põe toda a gente a cantar e a dançar, jovens e velhos.
Mas precisamente porque ele é o genuíno cantor popular português, o Quim Barreiros possui todas as qualidades e todos os defeitos do povo português. Referir-me-ei aqui a um defeito, o mais importante de todos, e que é aquele que há 30 ou 40 anos atrás impediria o Quim Barreiros de ser convidado para uma festa de universitários - a sua falta de julgamento, a sua propensão para o exagero, para o excesso e para o abuso.
O humor popular português faz-se normalmente de jogos sobre o sentido das palavras. É feita uma afirmação ou utilizada uma palavra. Essa afirmação ou palavra é depois utilizada num sentido completamente diferente e (quase) legítimo. O humor resulta do choque entre o sentido original da palavra ou da afirmação e da interpretação diferente, e quase legítima, que lhe é dada. A conversa torna-se uma conversa de alhos e bugalhos, uma conversa de surdos. Um exemplo, retirado de um sketch do Herman.
-Então, de onde é que o senhor vem...?, pergunta o entrevistador
-Eu venho de tomar ... , responde o rapazola (interpretado pelo Herman)-Ah ... Tomar ... bonita cidade ..., interrompe o entrevistador.
-Eu venho de tomar a camioneta de Sacavém ..., continua o rapazola.
Os grandes humoristas portugueses, como o Raul Solnado ou o Herman José, capitalizam sobre os jogos de palavras, verdadeiros mal-entendidos. Quando deixam de o fazer, perdem a graça.
O humor popular português é um humor barato, faz-se de palavras e de jogos de palavras. A brejeirice também faz parte da cultura popular portuguesa, e os temas do Quim Barreiros são invariavelmente brejeiros. Mas, enquanto nas suas primeiras canções, a brejeirice assentava também em jogos sobre o sentido das palavras e das frases, as quais eram produzidas com um sentido, mas deixavam imaginar outro, isto é, enquanto a brejeirice era implícita, de algum modo apelando à imaginação do espectador e deixando que ele tirasse as suas próprias conclusões, era uma brejeirice aceitável. Mas a tendência para o excesso e o abuso, que é típica do povo português, levou o Quim Barreiros a passar a fronteira. Da brejeirice, que é sempre implícita, o Quim Barreiros deu o passo fatal para o domínio do explícito, e tornou as suas canções ordinárias. Canções como "A cabritinha" e "A garagem da vizinha" estão na fronteira, porque ainda deixam alguma margem à imaginação e à ambiguidade de interpretação. Pelo contrário, canções como "Chupa Teresa", "A Adivinha" e "Ela estava com tusa" não deixam nenhuma margem para adivinhar. Está lá tudo de forma explícita. Além de ordinárias, chegam a ser ofensivas.
Por que é que o Quim Barreiros seria vetado numa festa de universitários de há 30 ou 40 anos? Porque, para nós, rapazes, as suas canções seriam consideradas ofensivas para as nossas colegas.
O significado mais importante da participação do Quim Barreiros nas festas de universitários é o da alteração sociológica que se produziu na população universitária. As universidades foram criadas pela Igreja Católica para formar as suas elites. E até há cerca de 40 anos em Portugal, as universidades eram também locais para educar elites, embora os universitários proviessem frequentemente do povo. O primeiro momento de selecção entre aqueles que poderiam vir a fazer parte da elite, e aqueles que iriam permanecer sempre povo, era o do acesso à universidade. Outro momento importante de selecção era a saída com uma licenciatura ou sem ela.
Hoje é o povo que está indiscriminadamente na Universidade. As universidades são hoje instituições para educar o povo, algo que elas nunca foram nem foram criadas para isso. Ora, isto é uma tragédia, quer para a Universidade quer para o povo. O povo vai dar cabo da Universidade, sem nunca conseguir ser educado por ela.
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