11 agosto 2010

sociedade livre e "sociedade libertária do futuro"

Dada a extensão deste comentário, escrito em resposta a outros do Carlos Novais, segue o mesmo em forma de post.


Caro Carlos Novais,

Li o The Ethics of Liberty há uns anos e, na altura, li-o bem. A sensação que me transmitiu foi a de uma obra que alterna coisas excelentes com perfeitos disparates. Do Rothbard li, também, o opúsculo sobre o Mises e a sua História do Pensamento Económico, das melhores que até hoje li. Reconheço que me falta preencher inúmeras lacunas sobre o autor, embora acompanhe o que sobre ele e a sua obra dizem e escrevem alguns dos seus seguidores, entre eles você, que julgo ser o rothbardiano português melhor preparado. Conheço, também, a tradição política em que o Rothbard se insere, li a Rand e conheço o Objectivismo. Não é muito, mas chega para considerar que, a meu ver, se trata de um sistema de ideias hermeticamente fechado, onde todas as parcelas se relacionam, sem excepção, e dependem umas das outras para manterem a coerência da teoria. Por natureza, sou um pouco avesso às teorias sistémicas, que “explicam” a realidade do princípio até ao fim, como se ela não tivesse mistérios a resolver e inúmeros imponderáveis a enfrentar. Daqui à engenharia social vai um pequeno passo e, como hayekiano que, de facto, me considero, tenho horror a todas as formas de construtivismo social. A referência, por exemplo, a uma "libertarian society of the future" provoca-me calafrios, porque me parece saída do mais perigoso racionalismo iluminista que se pode conceber.

Especificamente sobre o assunto que termos vindo a discutir - o sistema ético de Rothbard aplicado ao direito da família - não há qualquer confusão entre ética e moral, e, apesar das inúmeras subtilezas de ambos os termos, ainda creio ser capaz de distinguir essa dicotomia. A questão é que, independentemente do ser e do dever ser, Rothbard funda a sua ideia de liberdade na possibilidade de fuga à responsabilidade, ou melhor, e neste caso concreto, na “imoralidade” que resulta da possibilidade de uma ordem normativa exercer coacção sobre um indivíduo para lhe exigir responsabilidades decorrentes de um acto seu de procriação. Esta ideia de liberdade, onde a propriedade absoluta sobre mim mesmo me permite escapar à coacção imposta pela minha responsabilização pelos meus actos, a pretexto de que constituiria um ilegítimo exercício de coacção, não é, a meu ver, liberal. Salvo melhor opinião, os clássicos do liberalismo fundam os alicerces das suas teorias sobre a distinção entre o que é e não é moral, e não na absoluta soberania do indivíduo, muito menos ainda no império da razão individual (isto cheira-me mais a Nietzsche, para lhe dizer a verdade). De resto, homens como Howard Roark felizmente não existem: são modelos, paradigmas, figuras de romance nas quais se sintetizam as virtudes de uma filosofia, semelhantes aos arquétipos que encontramos nas mitologias antigas. Pertencem ao mundo dos deuses, não ao dos homens.

Enxertar isto na realidade da vida, como o Carlos faz ao perguntar “Como sancionar uma mãe que abandona o filho”, ou “que disposição legal pode fazer os pais criar e alimentar os filhos”, não pode dar bons resultados, já que as respostas que consigo intuir ao Carlos são negativas: não é possível sancionar uma mãe que abandone um filho, nem é possível obrigar um pai a alimentar um filho que gerou se ele não quiser. Este é o resultado a que chegaria, segundo creio, o Carlos, aplicando a ética rothbardiana a estes casos concretos. Todavia, numa ética liberal fundada na responsabilidade por actos próprios e numa ordem jurídica que resulta da ordem social espontânea (onde a maior parte do Direito da Família, mesmo até o nosso, efectivamente funda os seus alicerces), as respostas seriam diferentes. Numa sociedade livre existem instituições normativas e sociais que castigam aqueles que cometem actos ilícitos, devendo a ilicitude dos actos ser aferida pela violação de direitos fundamentais e de contratos livremente estabelecidos, e não propriamente pela vontade soberana do legislador, ainda que esse legislador pretenda, com o exercício da sua vontade “racional”, construir a dita "libertarian society of the future”...

Voltando aos nossos casos concretos, a sanção para um pai que não alimenta um filho, ou para uma mãe que o rejeita, não será, no limite, caso isso seja inexequível ou prejudique a criança, impor-lhes o exercício directo dessas responsabilidades, mas castigá-los por não as cumprirem, e, havendo meios para isso, impor-lhes a obrigação de contribuírem pecuniariamente para que alguém por eles execute esses fins. Um exemplo clássico disso são as nossas pensões de alimentos impostas a pais relapsos que, ao verem-se livres das mães dos seus filhos (direito que lhes não nego, era o que mais faltava!), se pretendem livrar também das responsabilidades sobre os seus filhos, furtando-se a sustentá-los. Aqui, nem o direito nem os tribunais devem ter mão leve e, a meu ver, devem não só impor-lhes essa obrigação, como os devem castigar seriamente se eles continuarem a furtar-se a cumpri-la. Se reparar bem, não se trata aqui de coagir seja quem for à prática de actos que sejam contra a natureza das coisas, mas repor uma situação de direito que nunca deveria ter sido posta em causa.

A ordem natural das coisas é a de que os pais cuidem dos seus filhos. Numa sociedade civilizada, isto é, numa sociedade livre, quem se furta ao cumprimento das regras societárias elementares geradas pela tradição e pelo costume deve ser obrigado a respeitá-las e condenado se as violar. Numa sociedade livre, o direito declara os bens sociais e comunitários que devem ser objecto de protecção e desenvolve instituições para fiscalizar e tutelar o respeito por esses bens. Nesta perspectiva das coisas, a coexistência de vários sistemas produtores de direito (fontes de direito) dentro de uma comunidade e num território, não impede que essa fiscalização se faça eficazmente. Pelo contrário, pode até resultar num melhor apuramento das normas e das suas soluções. Isso ocorria muito no período europeu medieval, e até mais tarde, com a comunicação de costumes, pela qual comunidades vizinhas adaptavam de outras normas jurídicas consuetudinárias que consideravam serem mais adequadas do que as suas para a solução de determinados problemas. O Carlos reparará, todavia, que nesse sistema concorrencial de normas jurídicas não existem diferenças substanciais no tratamento dos aspectos essenciais pelos quais se regem as relações entre os indivíduos em sociedade. E quando essas diferenças existiam, as melhores soluções acabavam por prevalecer sobre as demais. É que é a esse núcleo jurídico essencial, que a sensibilidade humana reconhece como fundamental ao longo do tempo, que os liberais chamam direito natural.

Sem comentários: