14 julho 2010

não se bastam a si mesmos

Quando era miúdo passava largos dias do ano, invariavelmente os dois meses das chamadas “férias grandes”, de papo para o ar numa praia do Norte de Portugal, na companhia sempre presente, amiga de tutelar dos meus Pais.
Uma das coisas que mais me entusiasmava, a mim e à miudagem em geral, eram as compras que fazíamos aos vendedores ambulantes, que vendiam um pouco de tudo, desde os gelados da Olá (com prémio nos pauzinhos...), à bolacha americana, às bolas de Berlim e outros pastéis de confecção medíocre, pipocas, rissóis e croquetes, dropes e pirolitos, e muitas outras “porcarias” do género que faziam a alegria da pequenada.

Os produtos nem sempre estavam nas melhores condições (sobretudo os gelados, que derretiam sob um sol, às vezes, abrasador, guardados que estavam em arcas frigoríficas ambulantes de fraca qualidade), uma vez por outra tinham um aspecto pouco recomendável, mas entre mim, criança, e os produtos vendidos estavam os meus pais, adultos sensatos, que quando viam que as coisas podiam oferecer algum perigo para a minha saúde pura e simplesmente não as compravam

Em muitos anos de praia que vivi em criança e da muita “porcaria” que por lá comi, nunca me sucedeu ter contraído qualquer doença ou sofrido um achaque que resultasse desse consumo. Da muita primalhada e crianças amigas que tinha e que faziam praia connosco também não tive notícia de dramas dessa espécie. Não me parece, portanto, que a venda ambulante de produtos alimentares nas praias possa constituir uma ameaça à saúde pública que justifique qualquer intervenção dos poderes soberanos. Do que tenho conhecido no turismo balnear que venho fazendo em adulto, desde algumas praias da Europa, às da América do Sul, constato que o sistema é universal e que ninguém reclama em parte alguma a intervenção do ius imperii para ser autorizado a comer um gelado, um pastel, uma bola de Berlim sob o sol quente de uma praia.

Em Portugal, as coisas parecem ter, entretanto, mudado. Hoje, o estado considera-se intermediário necessário entre o consumidor e o vendedor de produtos alimentares vendidos nas praias. Já não chegam o juízo e o bom senso das pessoas, desde logo dos pais e adultos responsáveis pelas crianças: o estado regulamenta as saquinhas onde os produtos são vendidos, fiscaliza o seu estado de conservação no momento da venda, verifica se os tributos devidos estão pagos e assegurados. Para isso dispõe de uma burocracia própria à mediação destas complexas relações sociais, a quem deve pagar para assegurar esta importante intervenção pública.

O que estranho em tudo isto é a forma passiva e nalguns casos entusiástica com que muitos portugueses aceitam mais esta perda de espontaneidade social (vd., por exemplo, a caixa de comentários deste post). Estranho, mas não me espanto. Na verdade, não é por acaso que estamos como estamos. De há muito para cá que os portugueses declinam responsabilidade pessoal em tudo o que fazem, e aguardam que o estado os substitua em todas as dimensões da sua existência: até mesmo para comerem bolas de Berlim nas praias de Portugal os portugueses não se bastam a si mesmos.

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