22 fevereiro 2010

Mais um

Dentre os pilares que servem de suporte teológico à Doutrina Social da Igreja - solidariedade, subsidiaridade e personalismo - aquele que carece de mais elaboração é o do personalismo. Sendo o homem criado à imagem e semelhança de Deus, o homem é, na ordem terrena, a origem, o sujeito e o fim último de todas as coisas: "A ordem das coisas deve estar subordinada à ordem das pessoas, e não o contrário" (Cat: 1912). E, mais adiante, "A pessoa humana representa o fim último da sociedade, que está ordenada para ela" (Cat: 1929).
O socialismo, que inverte a ordem das coisas, pondo o homem a servir a sociedade, é uma heresia da doutrina personalista do catolicismo. Mas o liberalismo moderno incorre numa outra heresia que, sendo mais subtil, não deixa de ser muito mais perigosa (cf. post seguinte). Trata-se de substituir o personalismo pelo individualismo, a ideia de que cada homem é um mero fragmento da sociedade e essencialmente igual a todos os outros.
De forma breve, pode dizer-se que o individualismo vê nos homens mais semelhanças do que diferenças, ao passo que o personalismo vê neles mais diferenças do que semelhanças. A distinção está na ideia de personalidade, o conjunto dos atributos únicos, distintivos e irrepetíveis de cada ser humano.
Joseph Ratzinger expôs assim a diferença num livro publicado originalmente em 1968:
"(...) a mais pequena coisa que pode amar é uma das maiores; o particular é mais que o universal; a pessoa, única e irrepetível, é ao mesmo tempo a última e a maior coisa. Nesta visão do mundo, a pessoa não é apenas um indivíduo, uma reprodução resultante da difusão da idéia na matéria, mas, precisamente, uma «pessoa». O pensamento grego sempre considerou as muitas criaturas individuais, incluindo os muitos seres humanos individuais, apenas como indivíduos, resultantes da separação da ideia na matéria. As reproduções são sempre secundárias; a coisa real é o único e o universal. O Cristão vê no homem, não um indivíduo, mas uma pessoa; e parece-me que esta passagem do indivíduo para a pessoa contém toda a transição da antiguidade para a Cristandade, do Platonismo para a fé. Este ser definido não é algo de meramente secundário, ou apenas uma manifestação fragmentada do universal, que é o real. Como um mínimo ele é um máximo; como o único e o irrepetível, ele é algo supremo e real" (*).
Este regresso à visão grega do homem como um indivíduo - um mero fragmento da sociedade igual a tantos outros - , e não como uma pessoa - um ser único dotado de uma personalidade própria, única e irrepetível - foi o resultado de uma mudança de atitude característica da modernidade e que atingiu a sua plenitude com Kant (**). A verdade deixa de estar no ser ou no homem (verum est ens) e passa a estar nos factos (verum quia factum). Foi esta nova atitude que conduziu à ciência moderna, mas ela também tornou o homem um mero facto da natureza, suficientemente igual aos outros para que possa ser massificado e objecto de tratamento estatístico.
A ciência económica com as suas leis e as suas comprovações empíricas de natureza estatística nunca teria sido possível sem esta transformação. Nem a ideia de mercado, como processo social espontâneo, que é central ao liberalismo moderno, e sobre o qual ele pretende fazer assentar todo o ordenamento social, seria possível sem esta transformação. E a transformação, não é de mais relembrar, consiste em deixar de ver o homem como uma pessoa e passar a vê-lo como um mero indivíduo essencialmente igual a todos os outros. Mais um.


(*) Joseph Ratzinger, Introduction to Christianity, S. Francisco: Ignatius Press, 2004, pp. 160-161.
(**) Ratzinger, op. cit., pp. 58-59.

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