05 novembro 2009

poder político e poder civil

A distinção entre poder civil e poder político é essencial para se compreenderem as relações entre o estado e os indivíduos. O poder político arroga-se da faculdade da soberania, isto é, da possibilidade de decidir sem o consentimento dos destinatários. A eficácia dessas decisões assenta sobre um aparelho de poder e de coacção que pode operar contra a vontade dos indivíduos. A legitimidade destas faculdades tem variado ao longo do tempo, na sua fundamentação teórica e nos requisitos para a sua verificação, mas hoje é quase unanimemente encontrada no sufrágio universal. O poder civil não dispõe de quaisquer prerrogativas soberanas, resultando da vontade dos indivíduos manifesta através de relações de troca contratualizadas juridicamente. As regras de funcionamento do poder civil e do poder político, bem como as normas que estatuem as relações entre ambas, são regras de direito ou normas jurídicas que têm também origem e fundamentos distintos. Assim, enquanto que o poder político é conformado por regras enunciadas por declarações solenes proferidas por assembleias constituintes, que habitualmente se esgotam no espírito da época em que são feitas, as normas jurídicas que estabelecem as relações civis são buriladas pelo tempo, e mesmo quando fruto de leis e códigos legislativos, costumam incorporar e aceitar esse património e esse legado, por vezes ancestrais.

O liberalismo é uma doutrina política que se situa âmago do poder civil. Preocupa-se com as relações deste com o poder político e com a soberania, e cuida de o preservar contra a coacção do estado, em relação à qual a sua defesa é sempre muito limitada, lenta e frequentemente ineficaz. O Estado de Direito contemporâneo pressupõe que ela se faça nos limites do direito vigente, utilizando para isso o aparelho judicial, que deve ser independente do poder político. Mas esquece-se que a justiça aplica normas que são – pelo menos nos sistemas romanísticos, como o nosso – da inteira criação da soberania, o que distorce completamente as relações de poder entre as partes. Se a isto acrescentarmos o facto de que a interpretação política e legislativa da volonté générale quase não deixa limites objectivos à soberania e ao legislador, que não sejam os direitos fundamentais enunciados nas Constituições democráticas em formas muitas vezes abstractas e facilmente contornáveis por um legislador astuto, o cenário piora francamente.

Neste processo de vasos comunicantes que são as relações de poder entre a sociedade civil e a sociedade política, onde o que é habitual é o desiquilíbrio em benefício da segunda e em prejuízo claro da primeira, o que se torna cada vez mais importante é encontrar mecanismos de defesa dos indivíduos face ao estado. É certo que esses mecanismos são tanto mais fáceis de encontrar e de aplicar em sociedades economicamente desenvolvidas, prósperas, com instituições e empresas que não dependam do estado para a sua existência e subsistência. Não existem sociedades economicamente desenvolvidas e com uma classe média forte que suportem, por muito tempo, estados opressivos. Não é manifestamente o caso português, onde o excesso de estatismo se deve à ausência de sociedade civil. Situação que, de resto, resultou de um longo processo histórico de centralização e esvaziamento desta última por um estado que é dos mais velhos da Europa, onde nunca houve feudalismo e onde o regime senhorial foi precocemente combatido, onde o municipalismo foi funcionalizado pelos poderes públicos, e onde a liberdade económica foi sempre muito condicionada. Sair daqui não é fácil. E, provavelmente, não é mesmo possível.

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