09 novembro 2009

os limites da acção do estado

Ao invés do que o Carlos Santos defendeu neste interessante texto (mais um), a natureza das fontes de direito vigentes numa dada ordem jurídica é muito importante. Ela é mesmo, em minha opinião, o aspecto que determinou a centralização e o estatismo dominantes nas sociedades europeias ocidentais dos nossos dias, correspondendo a um novo paradigma de intervencionismo ilimitado do governo na vida dos cidadãos. Tocqueville viu esse processo com muita clareza, ainda nos meados do século XIX, ao escrever, no Ancien Régime, que a disputa histórica entre os parlamentos e os reis se dera mais pelo poder de fazer a lei, do que pelo exercício directo da administração. Esse conflito tem já alguns séculos, na altura em que Tocqueville escreve, e foi acompanhado, ao longo da História, por um outro: o da afirmação do princípio da legalidade sobre o da concorrência entre as fontes de direito, nomeadamente as de natureza consuetudinária e jurisprudencial, concentrando na soberania o privilégio da criação de direito. Com a eclosão dos regimes democráticos, onde a soberania é sufragada pelo voto universal, essa sua aparente legitimidade de poder dispor, quase sem limites, da determinação do conteúdo da lei, foi reforçada, ampliando desmesuradamente a capacidade interventora do estado em todos os domínios da vida social.

O que torna interessante a ordem jurídica da União Europeia é que ela retoma – ao invés da tradição jurídica europeia continental mais recente (com excepção do que ainda se vai passado em Inglaterra) – o sistema concorrencial das fontes de direito, e aplica-o na ordem jurídica interna de países que o tinham eliminado. Ela aceita não somente o direito legislado, como também aquele que resulta da jurisprudência e mesmo do costume, o que o torna muito mais próximo das boas práticas resultantes da interacção social estabelecida entre os indivíduos, as empresas e as instituições judiciais que tutelam a normalidade dos seus comportamentos. Assim, as normas jurídicas que equilibram o funcionamento do mercado, quando e se originárias pela jurisprudência e pelo costume – ou mesmo pela lei, se esta se limitar a transpor o que aquelas outras fontes revelam, em vez de gerar “soluções” a régua e esquadro -, não são imposições normativas do legislador, nem formas de intervencionismo estatal na economia, mas processos auto-regulatórios provenientes do próprio mercado. Nada contra, portanto.

Em abstracto, eu poderia até admitir que o estado e o legislador pudessem intervir no mercado e na vida dos cidadãos, sempre que eles não conseguem – de imediato – determinar a melhor solução para as questões que os afligem ou prejudicam. A questão – para mim, enquanto liberal – não reside nesse mínimo de intervenção que a própria existência do estado e do governo, só por si, já significam - embora eu prefira tendencialmente uma solução de mercado a uma decisão impositiva do poder soberano -, mas nos limites praticamente inexistentes dessa intervenção, que decorrem exactamente da convicção democrática da soberania legislativa ilimitada e da racionalidade inerente à própria natureza do poder público. Porque, como penso que o Carlos reconhecerá, o estado democrático em que vivemos não conhece verdadeiros limites para os seus poderes de intervenção, e entra-nos casa dentro sempre que quer, quando lhe apetece e lhe convém. Essa é a sua racionalidade, e é por causa dela que o liberalismo se justifica. A questão que eu colocaria ao Carlos é, portanto, a seguinte: prefere o Carlos, como princípio social, a intervenção do estado ou a decisão em processo de mercado? Na hipótese de preferir a primeira, ou de a considerar constantemente necessária em virtude da falibilidade permanente da segunda, reformulo a minha pergunta, perguntando-lhe como vê o Carlos os limites da actuação do estado e como e quem ele acha que definirá esses limites e os fiscalizará com eficácia?

Nenhuma destas questões é do domínio do “reino da fantasia”, onde o João Galamba presume viverem os liberais. Elas são, em minha opinião, mais próprias de um verdadeiro reino de terror para onde o estatismo nos tem remetido, e que tem trepanado a sociedade, empobrecido o nosso país, esvaziado a iniciativa privada e destruído o tecido empresarial. Quando o Carlos refere – e bem – as inúmeras dificuldades que um trabalhador português sente, quando desempregado, para encontrar uma nova colocação profissional, isso deve-se, em minha opinião, apenas ao facto do país não ter empresas que lhe ofereçam emprego e não da falta de mecanismos legais que “protejam” os trabalhadores, que, de resto, há-de o Carlos reconhecer, proliferam abundantemente pelo nosso ordenamento jurídico. Nas últimas décadas, as dificuldades criadas às empresas e aos empresários – sempre em abono e em defesa dos direitos dos trabalhadores – criaram uma situação tal, que o risco empresarial raramente é compensador e apelativo. O estado substituiu-se a quem podia criar emprego e, agora, o emprego é um bem escasso, quase em vias de extinção. Por essas e por outras, é que a AutoEuropa, um exemplo que o Carlos trouxe à colação, está a pensar retirar-se de Portugal, como muitas outras empresas estrangeiras o fizeram nos últimos anos. E que o investimento estrangeiro desceu, em 2007, para a metade do ano anterior, quando cresceu em todos os outros 26 países da União no mesmo período. A outra pergunta que eu coloco aqui ao Carlos é, portanto, a seguinte: acredita ele no estado para recuperar as empresas e fazer empresários, ou prefere que eles possam naturalmente nascer do livre jogo do mercado? No fim de contas, é a pergunta anterior com palavras diferentes, ou seja, a seguinte: até onde acha o Carlos que o estado deve ir?

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