Esta polémica entre o Tiago Moreira Ramalho e o João Távora levou-me, no seguimento de muitas outras que frequentemente pairam na blogosfera, a escrever um post há muito adiado sobre um tema curioso: a direita que a esquerda quer. Passo a explicar.
O primeiro ponto consiste na refutação da inutilidade da dicotomia esquerda-direita. Eu próprio, em tempos, padeci do mesmo vício intelectual, que é, antes do mais, uma afirmação – consciente ou inconsciente – de presunção e de vaidade individual, como se as categorias historicamente geradas fossem passíveis de superação meramente voluntarista. O facto é que o não são, e que, ainda que as coisas mudem e aparentemente percam algum sentido, elas são o que são, e não existem por mero acaso. Historicamente, mesmo antes da consagração da coisa operada na Revolução Francesa, os elementos tipificadores da esquerda e da direita são facilmente detectáveis. Podemos discuti-los e abordá-los num outro momento.
Depois, à direita, ou entre aqueles que não se acham de esquerda, existe uma propensão para o estabelecimento de uma triangulação ideológica: a esquerda, a direita e, no vértice, a meia distância entre ambas, o liberalismo. Eu próprio, novamente reconheço e me confesso, padeci também, em tempos, deste outro vício intelectual, corolário lógico e necessário do anterior, para não nos rendermos imediatamente ao pensamento de esquerda. Só que existe aqui um erro essencial: é que se o liberalismo clássico pode ser de direita, ele nunca será de esquerda. A razão reside no facto de que alguma direita partilha dos pressupostos do liberalismo clássico, enquanto que a esquerda é sempre, pelo menos, estatista, voluntarista e igualitarista. Qualquer uma destas três convicções filosóficas destrói, por si só, quanto mais por junto, os fundamentos essenciais do liberalismo clássico.
Por outro lado, se é certo que na direita encontramos frequentemente a defesa do estatismo e do caudilhismo, que invalidam também os pressupostos liberais, é nela – e nela somente – que podemos encontrar a defesa intransigente da propriedade, da liberdade económica, do estado mínimo e do governo limitado pelos valores do individualismo. Não existe em qualquer ideologia ou experiência concreta de governos de esquerda qualquer abertura para estes postulados.
A crítica mais pertinente que alguns “liberais” (cuja seriedade de intenções não questiono) move à direita, pretendendo afastá-la do liberalismo, está na sua identificação com o tradicionalismo e com o conservadorismo. É uma abordagem recorrente, na qual o próprio Hayek caiu (em relação ao conservadorismo, que não à tradição), embora, note-se, o tenha feito noutros tempos, e sem nunca afirmar que, embora um liberal possa não ser conservador (do que duvido), um conservador não possa ser liberal. A questão está em que o liberalismo – que se pressupõe na teoria da mão invisível, o mesmo é dizer, a ordem espontânea – exige a convicção na tradição e na necessidade de a não modificar violentamente por actos públicos do governo. Admito que, neste ponto, muitos conservadores entendam que é ao governo que compete a manutenção da ordem tradicional, e que esse seja o grande equívoco que continua a separar alguns liberais de alguns conservadores. Mas não é isso necessariamente que defende todo o pensamento conservador, e não vejo incompatibilidade em aceitar a tradição como o motor fundamental da ordem social espontânea, e o conservadorismo defensor da tradição e de um governo mínimo como a melhor expressão prática da política e do governo. Julgo até que eles casam muito bem.
Acrescentaria, em modo de epílogo, apenas mais algumas notas. A primeira, é que esta diluição dos conceitos de esquerda e de direita aproveita invariavelmente à primeira e prejudica sempre a segunda. A segunda, para afirmar que sempre que pairamos nesta indiferença ideológica a esquerda cresce e o governo também (não era, por exemplo, o Eng.º Sócrates um tecnocrata não-socialista, com fortes propensões liberais?...). A terceira, para dizer que esta mesma diluição conceptual provoca sempre que seja a esquerda a impor os ditames pelos quais se há-de orientar a direita que lhe convém: repúdio da tradição, anticlericalismo, aversão aos partidos de direita e um voluntarismo latente capaz de transformar o mundo, sobre o qual todo o pensamento de esquerda se ergue. A quarta e última, para dizer que se alguma direita é menos liberal do que devia, isso se deve mais a esta mentalidade a repudia, do que a um esforço sério e empenhado de construir uma plataforma política comum.
Termino com um velho ensinamento que os clássicos do realismo político (para os quais os liberais nem sempre olham como deviam), segundo o qual o mundo da política é o do “amigo-inimigo”. Por outras palavras, ele funda-se sobre um traço separador entre quem está de um lado e quem está do outro. Entre esquerda e direita, porque não? E, como nos ensina a História, ninguém se consegue equilibrar sobre essa fronteira por muito tempo.
O primeiro ponto consiste na refutação da inutilidade da dicotomia esquerda-direita. Eu próprio, em tempos, padeci do mesmo vício intelectual, que é, antes do mais, uma afirmação – consciente ou inconsciente – de presunção e de vaidade individual, como se as categorias historicamente geradas fossem passíveis de superação meramente voluntarista. O facto é que o não são, e que, ainda que as coisas mudem e aparentemente percam algum sentido, elas são o que são, e não existem por mero acaso. Historicamente, mesmo antes da consagração da coisa operada na Revolução Francesa, os elementos tipificadores da esquerda e da direita são facilmente detectáveis. Podemos discuti-los e abordá-los num outro momento.
Depois, à direita, ou entre aqueles que não se acham de esquerda, existe uma propensão para o estabelecimento de uma triangulação ideológica: a esquerda, a direita e, no vértice, a meia distância entre ambas, o liberalismo. Eu próprio, novamente reconheço e me confesso, padeci também, em tempos, deste outro vício intelectual, corolário lógico e necessário do anterior, para não nos rendermos imediatamente ao pensamento de esquerda. Só que existe aqui um erro essencial: é que se o liberalismo clássico pode ser de direita, ele nunca será de esquerda. A razão reside no facto de que alguma direita partilha dos pressupostos do liberalismo clássico, enquanto que a esquerda é sempre, pelo menos, estatista, voluntarista e igualitarista. Qualquer uma destas três convicções filosóficas destrói, por si só, quanto mais por junto, os fundamentos essenciais do liberalismo clássico.
Por outro lado, se é certo que na direita encontramos frequentemente a defesa do estatismo e do caudilhismo, que invalidam também os pressupostos liberais, é nela – e nela somente – que podemos encontrar a defesa intransigente da propriedade, da liberdade económica, do estado mínimo e do governo limitado pelos valores do individualismo. Não existe em qualquer ideologia ou experiência concreta de governos de esquerda qualquer abertura para estes postulados.
A crítica mais pertinente que alguns “liberais” (cuja seriedade de intenções não questiono) move à direita, pretendendo afastá-la do liberalismo, está na sua identificação com o tradicionalismo e com o conservadorismo. É uma abordagem recorrente, na qual o próprio Hayek caiu (em relação ao conservadorismo, que não à tradição), embora, note-se, o tenha feito noutros tempos, e sem nunca afirmar que, embora um liberal possa não ser conservador (do que duvido), um conservador não possa ser liberal. A questão está em que o liberalismo – que se pressupõe na teoria da mão invisível, o mesmo é dizer, a ordem espontânea – exige a convicção na tradição e na necessidade de a não modificar violentamente por actos públicos do governo. Admito que, neste ponto, muitos conservadores entendam que é ao governo que compete a manutenção da ordem tradicional, e que esse seja o grande equívoco que continua a separar alguns liberais de alguns conservadores. Mas não é isso necessariamente que defende todo o pensamento conservador, e não vejo incompatibilidade em aceitar a tradição como o motor fundamental da ordem social espontânea, e o conservadorismo defensor da tradição e de um governo mínimo como a melhor expressão prática da política e do governo. Julgo até que eles casam muito bem.
Acrescentaria, em modo de epílogo, apenas mais algumas notas. A primeira, é que esta diluição dos conceitos de esquerda e de direita aproveita invariavelmente à primeira e prejudica sempre a segunda. A segunda, para afirmar que sempre que pairamos nesta indiferença ideológica a esquerda cresce e o governo também (não era, por exemplo, o Eng.º Sócrates um tecnocrata não-socialista, com fortes propensões liberais?...). A terceira, para dizer que esta mesma diluição conceptual provoca sempre que seja a esquerda a impor os ditames pelos quais se há-de orientar a direita que lhe convém: repúdio da tradição, anticlericalismo, aversão aos partidos de direita e um voluntarismo latente capaz de transformar o mundo, sobre o qual todo o pensamento de esquerda se ergue. A quarta e última, para dizer que se alguma direita é menos liberal do que devia, isso se deve mais a esta mentalidade a repudia, do que a um esforço sério e empenhado de construir uma plataforma política comum.
Termino com um velho ensinamento que os clássicos do realismo político (para os quais os liberais nem sempre olham como deviam), segundo o qual o mundo da política é o do “amigo-inimigo”. Por outras palavras, ele funda-se sobre um traço separador entre quem está de um lado e quem está do outro. Entre esquerda e direita, porque não? E, como nos ensina a História, ninguém se consegue equilibrar sobre essa fronteira por muito tempo.
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