21 agosto 2009

cosa nostra



Confesso o meu fascínio de sempre pela Máfia. Pela história da instituição, pelas origens míticas e perdidas no tempo, pela inteligência de alguns dos seus líderes, pela dimensão empresarial da organização, pela estratégia de dissimulação que seguiu durante décadas (“A Máfia é coisa que não existe”...), pelos rituais, pela arrogância de atravessar o Atlântico e implantar-se na terra das oportunidades, mas, sobretudo, pela natureza eminentemente política que possuiu antes de ser uma organização criminosa, e que nunca deixou de ter, nem mesmo nos seus momentos mais sinistros. A Máfia foi e é, antes de mais, um estado, isto é, uma forma de organizar politica e socialmente uma comunidade alargada de pessoas, concretamente, durante décadas, a Sicília e os sicilianos. Foi um estado antes do estado quando a Sicília era terra de ninguém, foi um estado para além do imberbe estado italiano quando este se começou a impor naquela ilha, e foi um estado dentro do estado e contra o estado quando este se afirmou em pleno na Itália após a 2ª Guerra Mundial, e nos EUA do século XX.

As origens históricas da Máfia perdem-se no tempo e não reúnem o consenso dos historiadores. Essencialmente, perduram duas teses. A primeira, a de que ela é uma organização siciliana muito antiga, que implantou um regime de natureza feudal gerido por chefes soberanos (os “padrinhos”), que eram os homens mais influentes da sua região. Em cada território mafioso o padrinho e a sua organização política e administrativa (a “Família”, que não é a família de sangue, mas a família mafiosa constituída pelos homens que ele selecciona e que prestam juramento à organização de acordo com os seus rituais de iniciação) gozam de soberania quase absoluta e administram as comunidades como um qualquer poder político: garantem a segurança, prestam serviços a quem lhos suscita (ficando devedores, por esse facto, ao padrinho e à organização), enunciam o direito local (quase sempre baseado na tradição e nos costumes) e aplicam a justiça. Em troca, cobram impostos e favores a quem se sujeita ao seu poder. A segunda tese, bem mais prosaica e muito menos idílica, defendida, entre outros, por John Dickie (Cosa Nostra – História da Máfia Siciliana, Edições 70, 2006), afirma que todo esse suposto passado é uma lenda criada pela própria organização com a finalidade de se enaltecer, e que a sua história é muito mais recente, datando somente do fim do século XIX, tendo-se iniciado com a extorsão criminosa feita aos proprietários das plantações sicilianas de limão, ao tempo tão valorizado por combater eficazmente algumas doenças, entre elas o escorbuto. Nesta interpretação, a Máfia fora sempre, apenas e só, uma organização criminosa, sem qualquer ligação à tradição siciliana e aos costumes dessa parte da Itália.

Curiosamente, esta última é a versão que mais e melhor assenta à estratégia que a Máfia seguiu durante décadas: negar a sua existência e desvalorizar tudo quanto era dito a seu respeito. Esta foi, de resto, a estratégia brilhantemente posta em prática por Lucky Luciano na conferência de 1929 dos grandes chefes da Máfia americana em Atlantic City, onde nasceu a célebre “Comissão”, organismo mafioso que reunia todos os padrinhos da principais Famílias. Rudolph Giuliani, que na década de sessenta foi um dos procuradores que investiu contra a Máfia, reconhece que só nessa altura ouviu falar na célebre “Comissão”, o que dá bem conta da natureza da estratégia seguida e do êxito da mesma. Luciano, um italo-americano cujo nome de baptismo era Salvatore Lucania, alcunhado de “Luckie” pela sorte que teve de conseguir escapar, muito novo ainda, a uma morte certa (fora pendurado num gancho de carne, com a garganta cortada, sendo que os seus algozes não lhe deram sequer o “tiro de misericórdia” por o julgarem já condenado), defendeu nessa conferência que a organização devia ser absolutamente discreta e que nem nome deveria ter. Os assuntos de que tratavam, as gentes que lhe pertenciam e as regras a que obedeciam eram “Cosa Nostra” e ponto final. Durante as décadas em que Luciano pontificou na Máfia dos dois lados do Atlântico, a organização dedicou-se aos seus negócios sem grandes sobressaltos. Mesmo quando Luciano foi preso nos Estados Unidos, as autoridades tiveram de ceder e negociar com a Máfia. A partir de 1941, quando entraram na 2ª Guerra Mundial, os EUA precisaram e pediram o apoio de Luciano e da sua vasta organização para conseguirem serenar os sindicatos (que a Máfia verdadeiramente controlava), estancarem as greves, e para prepararem a invasão da Sicília e a reorganização da Itália. Luciano foi transferido da penitenciária onde se encontrava e de que não gostava particularmente, para uma outra mais do seu agrado. Muitos padrinhos foram “milagrosamente” libertados muito antes de cumprirem as penas a que tinham sido condenados, e Luciano foi também, por sua vez, finalmente posto em liberdade pouco tempo após o fim da guerra, embora recambiado para Itália. Nos EUA houve quem sugerisse que fosse condecorado pelo Presidente, hipótese lançada com algum entusiasmo de circunstância, que acabou por não ter vencimento...

Na Sicília e nos EUA a estratégia da Máfia, sob o comando de Lucky Luciano e com padrinhos como Vito Genovese, Meyer Lansky, Carlo Gambino (que inspirou a personagem de Marlon Brando no filme de Coppola), ou de Vito Cascio Ferro, foi sempre a da discrição. Tinham outra regra de ouro: a de não colidir, em circunstância alguma, com os poderes públicos, não matando gente ligada à política, à justiça e ao estado em geral. Para Luciano a Máfia precisava do estado para viver e, por conseguinte, não o devia hostilizar. Quanto melhor estivesse o estado, melhor estaria a Máfia, certamente. Em Itália, na Sicília, a Máfia substituiu o estado nas suas funções tradicionais durante anos. Conviveu sempre bem com os poderes públicos que, de resto, não tinham um módico de poder real comparado com o da organização. Esta verdadeira pax mafiosa só foi interrompida pelo estado italiano no tempo do fascismo de Mussolini, que, compreensivelmente, na lógica totalitária dessa ideologia, não podia conceber nenhum poder que ensombrasse o seu. Por isso, o fascismo foi o grande adversário que a Máfia siciliana conheceu até aos anos 80, quando a organização esqueceu as regras de Luciano e declarou o estado italiano como o seu inimigo principal. Foi a época de Totò Riina e da Máfia de Corleone que lançou a Itália num verdadeiro pandemónio, assassinou políticos e agentes da justiça (entre eles os célebres juízes Giovanni Falcone e Paolo Borsellino). Como era óbvio, no fim, apesar dos estragos imensos que causou, perdeu. O seu sucessor, Bernado Provenzano, tentou acalmar as coisas, mas era já tarde. O estado italiano aplicava, por sua vez, a estratégia de Falcone: não se deixar iludir pela aparente fraqueza do inimigo e continuar a investir impiedosamente sobre ele.

A verdade dos factos é que, quer em Itália quer nos EUA, a fronteira entre o poder da Máfia e o do estado era difícil de distinguir durante largos períodos do século passado. Certamente que muito mais em Itália, até por razões históricas e de antiguidade da instituição, onde a Máfia e o estado frequentemente se sobrepunham, do que nos EUA, onde a Máfia infiltrou o estado e vivia à sua custa, mas nunca o substituiu. O objectivo da organização, em ambos os casos, consistia em ter o poder político e o poder judicial sob o controlo possível e, mais do que isso, conseguir aceder a benefícios e vantagens que só o estado - sobretudo o estado democrático e social - pode conceder: grandes obras públicas, concessões de licenças, exploração de serviços públicos, grandes negócios, etc. Não por acaso a Máfia americana apostou na infiltração e no domínio dos sindicatos como objectivo estratégico prioritário. Através deles conseguiram pressionar poderes públicos e privados, obtendo para si os negócios que lhes convinham.

Em face do poder alcançado por esta organização criminosa no século XX, surgiram duas teorias para lidar com o problema: uma, aparentemente vitoriosa, a de o atacar frontalmente, sem contemplações, como associação criminosa que é; outra, a de aceitar a pax mafiosa de Lucky Luciano, tolerando as suas actividades como um custo natural inerente às sociedades desenvolvidas e democráticas, mantendo-as, não obstante, sob observação. Eu creio que a tendência tem sido outra: a da absorção do tipo de negócios da Máfia pelo estado actual, uma vez praticamente derrotada essa organização, e num momento de crescimento exponencial das funções do estado e, consequentemente, do seu orçamento. De facto, os negócios a que a Máfia se dedicava continuam a existir, e já não se fazem à margem do estado ou à sua sombra por uma organização paralela, mas dentro do próprio estado e por gente que supostamente o serve. Atenda-se, de resto, ao que diz a célebre Lei Rognoni-La Torre, promulgada em Itália em 1982, no ciclo de combate estatal à Máfia, no seu artigo 2º que define as finalidades dessa organização: “(...) praticarem crimes, assumirem o controlo directo ou indirecto sobre actividades económicas, franchises, licenças, empreitadas e serviços públicos (...)”. Isto pratica-se hoje nas sociedades democráticas ocidentais, faz parte do jogo da política, e é domínio reservado a uns poucos, às elites políticas e empresariais que com elas se relacionam, que estão encostadas ao estado, em suma, às oligarquias do Estado Social. Para elas aqueles benefícios e privilégios estão-lhe praticamente reservados em exclusivo, sendo de muito difícil acesso ao cidadão ou ao empresário comum. Os cidadãos praticamente já se habituaram e muito raramente questionam este estado das coisas. São “cosa nostra”, como se dizia noutros tempos. Deles, é claro.

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