Os Evangelhos nunca mencionam a palavra Sacramentos. A doutrina da Igreja criou sete. Indo de volta aos Evangelhos é possível encontrar lá fundamentação para dois (três, segundo algumas interpretações) - o Baptismo e a Eucaristia -, mas não de forma institucionalizada. Não para os outros cinco.
Na tradição protestante o homem tem uma relação directa com Deus e atinge a salvação pela graça directa de Deus. A estrada para lá chegar é a da fé - e só a da fé (Sola Fides). Na tradição católica também é pela auto-estrada da fé que se chega a Deus, mas ninguém é livre de circular nesta auto-estrada livre de impedimentos.
Aconteceu a um homem que conduzia tranquilamente pela auto-estrada da fé no país católico, em direcção à Salvação. De repente, um carro marcado colou-se-lhe atrás, pirilampos acesos e sirenes a tocar. Assustado, o homem encostou à berma, e o carro marcado logo atrás dele. Saíram de lá dois agentes, vestidos de negro.
-Boa tarde ... os seus documentos, por favor ...
-Documentos?... Quais documentos?...
-O senhor sabe que não pode circular nesta auto-estrada sem o Certificado de Baptismo ...
-Olhe, senhor agente ... na verdade ... esqueci-me dele em casa ...
-E o Certificado do Crisma, tem-no consigo?
-Olhe ... esse é que não tenho ...
-O senhor é casado?
-Sou.
-Tem consigo o Certificado do Matrimónio?
-Olhe ... esse... - enquanto procurava no porta-luvas - ... deixe ver ... olhe, também não tenho ... Tá visto que me esqueci da papelada toda em casa ...
-Há quanto tempo é que o senhor não se confessa?
-Para lhe ser franco, senhor agente ... já não me lembro ...
-Pois é ... lamentamos ... mas não vamos poder deixá-lo seguir viagem ...
Quando regressou à cidade o homem contou aos outros a experiência que tinha tido. Ninguém mais se fez à auto-estrada da fé sem se munir dos certificados que a Agência da Fé, para facilitar a vida às pessoas, imprimia agora em forma de selos, colados no pára-brisas da frente. No caso de carros funerários era necessário um selo adicional, correspondente à Extrema Unção. A emissão dos certificados proporcionava à Agência da Fé uma receita fixa. Convinha, porém, ter produtos de receita variável para fazer face aos acasos de tesouraria e de expansão do negócio. A penitência foi a solução encontrada.
Foram instaladas portagens na auto-estrada da fé. Um condutor parou:
-Quais são os seus pecados?
-Umas mentiras e mais umas pequenas ingratidões...
-30 cêntimos. Pode seguir. Próximo...
-quatro faltas ao emprego para ir à praia e pancada na mulher ...
-5 euros. A seguir ...
-Dois homicídios e quatro assaltos à mão armada ...
-Encoste aí à direita que vai ter de falar com o chefe ...
Mais tarde, para facilitar a vida aos utentes, foram criadas portagens automáticas munidas de scanners que liam a consciência dos condutores e debitavam automaticamente as suas contas bancárias.
Do outro lado da fronteira, no país protestante, o trânsito fluia serenamente na auto-estrada da fé em direcção à Salvação. Não havia agentes da fé, nem selos, nem multas, nem portagens. Ninguém aborrecia ninguém, chegavam todos mais rapidamente a Deus e era muito mais barato. Até a gasolina e os automóveis estavam aí isentos de impostos.
Muitos católicos emigraram. Aquela cultura de pecado existente no seu país, que alimentava o négocio da Agência da Fé, era insuportável, sempre a atribuir pecados às pessoas e a cobrar-lhes por isso. Estava de tal maneira enraizada na população, que já não eram precisos os agentes da fé para atribuir pecados. As próprias pessoas se atribuiam pecados umas às outras, e aplicavam-se mutuamente o correlativo castigo. Nas filas de trânsito era frequente um condutor abrir a janela e gritar para o outro: "Oh cabrão ... vê lá se aprendes a conduzir! ...". Na portagem seguinte, ele resolvia o assunto por um pequeno adicional.
Aconteceu uma vez um habitante do país protestante visitar o país católico em turismo, e meter pela auto-estrada da fé. Notou a falta de respeito que os condutores tinham uns pelos outros, a forma como eles desrespeitavam as regras do trânsito, mas compreendeu a razão de ser da coisa quando na primeira portagem - uma instituição que ele desconhecia - os viu pagar por esses e por todos os outros pecados. Ele próprio pagou a portagem com relutância quando o portageiro lhe perguntou:
-Quais são os seus pecados?
-That's not your business!, respondeu indignado.
Não compreendendo a resposta, e vendo que era estrangeiro, o portageiro deixou-o seguir por oitenta e cinco cêntimos.
Mais desconcertado ficou quando a certa altura um carro marcado se colou a ele, pirilampos acesos e sirene no máximo, e o obrigou a parar. Delicadamente, os agentes dirigiram-se a ele:
-Os seus documentos, por favor ...
-What!? What do you mean, my documents? ...
-Os seus documentos ... o senhor sabe que não pode circular aqui na auto-estrada da fé sem o selo do baptismo, mais o do crisma, mais o do matrimónio ... e ainda o ticket das portagens ...
-Who are you, people?...
-Nós somos funcionários da Agência da Fé que possui a concessão desta auto-estrada ...
-Who granted you the concession?
-Deus, toda a gente sabe ...
-Please, show me copy of the contract ... signed by God! ...
Nesta altura, os agentes ficaram embaraçados, e um disse para o outro:
-Eh pá, aqui o camone, parece que nos quer dar tanga ...
-Aplica-lhe aí uma multa de mil euros para o gajo sossegar, respondeu-lhe o outro ao ouvido.
O agente assim fez. Anunciou ao protestante que tinha de pagar uma multa de mil euros, o que o protestante prontamente recusou fazer. Os agentes deram-lhe então ordem de prisão, pela falta dos selos no pára-brisas e por desrespeito à autoridade. Meteram-no no carro, e levaram-no ao superior.
Quando chegaram, o superior perguntou:
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-Então o que é que se passa com este turista?
-Este camone queria que nós lhe mostrássemos cópia do contrato de concessão da auto-estrada, e cópia assinada por Deus ... Imagine, assinada por Deus!... Mas quem é este camone julga que é para desconfiar de nós? Prendêmo-lo por conduzir sem selos de garantia da fé e por desrespeito à autoridade, o crime de heresia consagrado no artigo 15º do Código...
-Fizeram muito bem - disse o superior - ... Ora esta, a desconfiar de nós! ... Toda a gente sabe que Deus assinou connosco o contrato de concessão ... Já ninguém se lembra é onde é que está a papelada ...
Na tradição protestante o homem tem uma relação directa com Deus e atinge a salvação pela graça directa de Deus. A estrada para lá chegar é a da fé - e só a da fé (Sola Fides). Na tradição católica também é pela auto-estrada da fé que se chega a Deus, mas ninguém é livre de circular nesta auto-estrada livre de impedimentos.
Aconteceu a um homem que conduzia tranquilamente pela auto-estrada da fé no país católico, em direcção à Salvação. De repente, um carro marcado colou-se-lhe atrás, pirilampos acesos e sirenes a tocar. Assustado, o homem encostou à berma, e o carro marcado logo atrás dele. Saíram de lá dois agentes, vestidos de negro.
-Boa tarde ... os seus documentos, por favor ...
-Documentos?... Quais documentos?...
-O senhor sabe que não pode circular nesta auto-estrada sem o Certificado de Baptismo ...
-Olhe, senhor agente ... na verdade ... esqueci-me dele em casa ...
-E o Certificado do Crisma, tem-no consigo?
-Olhe ... esse é que não tenho ...
-O senhor é casado?
-Sou.
-Tem consigo o Certificado do Matrimónio?
-Olhe ... esse... - enquanto procurava no porta-luvas - ... deixe ver ... olhe, também não tenho ... Tá visto que me esqueci da papelada toda em casa ...
-Há quanto tempo é que o senhor não se confessa?
-Para lhe ser franco, senhor agente ... já não me lembro ...
-Pois é ... lamentamos ... mas não vamos poder deixá-lo seguir viagem ...
Quando regressou à cidade o homem contou aos outros a experiência que tinha tido. Ninguém mais se fez à auto-estrada da fé sem se munir dos certificados que a Agência da Fé, para facilitar a vida às pessoas, imprimia agora em forma de selos, colados no pára-brisas da frente. No caso de carros funerários era necessário um selo adicional, correspondente à Extrema Unção. A emissão dos certificados proporcionava à Agência da Fé uma receita fixa. Convinha, porém, ter produtos de receita variável para fazer face aos acasos de tesouraria e de expansão do negócio. A penitência foi a solução encontrada.
Foram instaladas portagens na auto-estrada da fé. Um condutor parou:
-Quais são os seus pecados?
-Umas mentiras e mais umas pequenas ingratidões...
-30 cêntimos. Pode seguir. Próximo...
-quatro faltas ao emprego para ir à praia e pancada na mulher ...
-5 euros. A seguir ...
-Dois homicídios e quatro assaltos à mão armada ...
-Encoste aí à direita que vai ter de falar com o chefe ...
Mais tarde, para facilitar a vida aos utentes, foram criadas portagens automáticas munidas de scanners que liam a consciência dos condutores e debitavam automaticamente as suas contas bancárias.
Do outro lado da fronteira, no país protestante, o trânsito fluia serenamente na auto-estrada da fé em direcção à Salvação. Não havia agentes da fé, nem selos, nem multas, nem portagens. Ninguém aborrecia ninguém, chegavam todos mais rapidamente a Deus e era muito mais barato. Até a gasolina e os automóveis estavam aí isentos de impostos.
Muitos católicos emigraram. Aquela cultura de pecado existente no seu país, que alimentava o négocio da Agência da Fé, era insuportável, sempre a atribuir pecados às pessoas e a cobrar-lhes por isso. Estava de tal maneira enraizada na população, que já não eram precisos os agentes da fé para atribuir pecados. As próprias pessoas se atribuiam pecados umas às outras, e aplicavam-se mutuamente o correlativo castigo. Nas filas de trânsito era frequente um condutor abrir a janela e gritar para o outro: "Oh cabrão ... vê lá se aprendes a conduzir! ...". Na portagem seguinte, ele resolvia o assunto por um pequeno adicional.
Aconteceu uma vez um habitante do país protestante visitar o país católico em turismo, e meter pela auto-estrada da fé. Notou a falta de respeito que os condutores tinham uns pelos outros, a forma como eles desrespeitavam as regras do trânsito, mas compreendeu a razão de ser da coisa quando na primeira portagem - uma instituição que ele desconhecia - os viu pagar por esses e por todos os outros pecados. Ele próprio pagou a portagem com relutância quando o portageiro lhe perguntou:
-Quais são os seus pecados?
-That's not your business!, respondeu indignado.
Não compreendendo a resposta, e vendo que era estrangeiro, o portageiro deixou-o seguir por oitenta e cinco cêntimos.
Mais desconcertado ficou quando a certa altura um carro marcado se colou a ele, pirilampos acesos e sirene no máximo, e o obrigou a parar. Delicadamente, os agentes dirigiram-se a ele:
-Os seus documentos, por favor ...
-What!? What do you mean, my documents? ...
-Os seus documentos ... o senhor sabe que não pode circular aqui na auto-estrada da fé sem o selo do baptismo, mais o do crisma, mais o do matrimónio ... e ainda o ticket das portagens ...
-Who are you, people?...
-Nós somos funcionários da Agência da Fé que possui a concessão desta auto-estrada ...
-Who granted you the concession?
-Deus, toda a gente sabe ...
-Please, show me copy of the contract ... signed by God! ...
Nesta altura, os agentes ficaram embaraçados, e um disse para o outro:
-Eh pá, aqui o camone, parece que nos quer dar tanga ...
-Aplica-lhe aí uma multa de mil euros para o gajo sossegar, respondeu-lhe o outro ao ouvido.
O agente assim fez. Anunciou ao protestante que tinha de pagar uma multa de mil euros, o que o protestante prontamente recusou fazer. Os agentes deram-lhe então ordem de prisão, pela falta dos selos no pára-brisas e por desrespeito à autoridade. Meteram-no no carro, e levaram-no ao superior.
Quando chegaram, o superior perguntou:
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-Então o que é que se passa com este turista?
-Este camone queria que nós lhe mostrássemos cópia do contrato de concessão da auto-estrada, e cópia assinada por Deus ... Imagine, assinada por Deus!... Mas quem é este camone julga que é para desconfiar de nós? Prendêmo-lo por conduzir sem selos de garantia da fé e por desrespeito à autoridade, o crime de heresia consagrado no artigo 15º do Código...
-Fizeram muito bem - disse o superior - ... Ora esta, a desconfiar de nós! ... Toda a gente sabe que Deus assinou connosco o contrato de concessão ... Já ninguém se lembra é onde é que está a papelada ...
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O povo do país católico ressentia, por vezes, os abusos e a riqueza da Agência da Fé, e a prepotência dos seus agentes. Um dia, um grupo dos mais afoitos fez uma revolução. A revolução prometia que o povo não seria mais explorado na auto-estrada da fé, os abusos dos selos, das portagens, das multas, das perseguições. Acabavam-se também os privilégios dos agentes da fé e todos passariam a ser iguais. A revolução foi um sucesso. Dois dias depois, os revolucionários estavam sentados à volta da mesa para traçar o futuro do novo país católico.
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Um revolucionário genuíno, perguntou ao comandante:
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-Comandante, agora vamos acabar com os selos, as portagens e as multas na auto-estrada da fé, e tudo vai ser livre e de graça para o povo, não é?
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Respondeu o comandante:
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-Tu és doido ou quê? Mas tu já reparaste na genialidade do modelo de negócios que a Agência da Fé montou. Demorou-lhe séculos, pá. Tu julgas que eu ia desperdiçar uma coisa destas? Repara, o povo queria ir a Salvação. Mas a Agência não deixava que o povo lá chegasse pelo seu livre pé. Convenceu o povo que os agentes da fé eram indispensáveis para o povo lá chegar, não fosse algum condutor tresmalhar-se e perder-se pelo caminho. Depois, puseram-se no meio a cobrar bilhetes e a passar multas. Isto é genial. É só convencer o povo, e depois pomo-nos no meio a cobrar bilhetes...
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-Então, o que vai fazer?, insistiu, curioso, o revolucionário.
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-Não tem nada que saber, pá. A primeira coisa a fazer é mudar os nomes. Em lugar de auto-estrada da fé, passa a chamar-se auto-estrada da maioria. E o destino, em lugar de Salvação, passa a chamar-se Liberdade. Os agentes da fé passam a chamar-se agentes da maioria, e também muda a côr da farda, passa de preta a cinzenta.
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-Ah! já estou a perceber a filosofia da revolução ... Mudam-se as moscas ...
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-Isso mesmo, pá, és um gajo inteligente. Este é um povo que se convence facilmente, desde que se seja hábil a fazê-lo. Arranjamos aí uns tipos bem-falantes, e já está. Pois a Agência da Fé não convenceu este povo que eram todos pecadores, e eles não se tratam como tal? Pois bem, nós vamos convencê-los que eles são também ignorantes, doentes, atrasados tecnologicamente ... e isso permite-nos vender mais selos para colocar nos pára-brisas e pôr mais portagens na auto-estrada, uma para a educação, outra para a saúde, outra para o avanço tecnológico ... E nós ficamos lá no meio a cobrar os bilhetes, pá!.
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