20 junho 2009

Sola Scriptura


Até ao século XVI pelo menos, a Igreja Católica, a única versão existente do Cristianismo, dominava praticamente todos os aspectos da vida na Europa Ocidental. Não havia problema humano que não fosse visto à luz da religião católica.

A Reforma Protestante do século XVI veio pôr termo ao monopólio que a Igreja Católica exercia sobre o espírito humano, embora não em toda a Europa. Em Portugal e Espanha, a reforma protestante nunca entrou, sendo estes dois países os agentes activos da chamada Contra-Reforma. Quais foram os hábitos de pensamento e de acção que passaram a ser cultivados nos países protestantes do norte da Europa (e mais tarde nos seus descendentes na América do Norte) e em que é que eles se diferenciam daqueles que permaneceram na Península Ibérica e que esta mais tarde passou aos seus descendentes na América Latina? Por outras palavras, o que é que distingue aquilo que tenho vindo a designar por cultura protestante e por cultura católica?
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Em breve, a resposta é: as cinco Solas. A primeira das cinco grandes diferenças entre protestantismo e catolicismo é o chamado Princípio da "Sola Scriptura", de que me ocuparei neste post.
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Qual é a fonte da revelação divina, isto é, se eu quiser saber o que é o Cristianismo e tornar-me um bom cristão, o que devo fazer? "Ouça os ensinamentos do magistério da Igreja (a chamada tradição)", responde a Igreja Católica. "Não, a Igreja Católica representa apenas uma interpretação, em muitos aspectos incorrecta e abusiva, do Cristianismo. Só lendo as Escrituras (Sola Scriptura) você aprende o que é o verdadeiro Cristianismo e se pode tornar um bom cristão", respondem os Protestantes.
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Então, se eu quero ser um verdadeiro cristão, num caso (Cat.), sou aconselhado a ouvir os ensinamentos dos padres, no outro (Prot.) sou aconselhado a ler os Evangelhos. As consequências que daqui resultam são consideráveis.
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A primeira é que, se eu sigo a via Protestante, a primeira coisa que tenho a fazer é aprender a ler, algo perfeitamente dispensável para quem decide seguir a via Católica - basta-lhe ir à missa ou à catequese e ouvir o padre. Mais ainda, passa a ser no interesse da Igreja Católica que as pessoas não aprendam a ler, não vão elas questionar os ensinamentos dos padres e tornarem-se protestantes (os quais, muito justamente, dispensam os padres).
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O resultado imediato é que a taxa de alfabetização nos países protestantes subiu em flecha enquanto que nos países católicos se manteve estacionária e baixa. Passados cinco séculos, essa diferença persiste, embora em menor grau.
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Eu decidi seguir a via Protestante e ler as Escrituras. A dificuldade, porém, é que Cristo fala frequentemente por parábolas, e eu não estou certo de o conseguir interpretar correctamente. Como me certificar de que a minha interpretação é correcta - isto é, como chegar à verdade da palavra de Cristo? A resposta parece óbvia. Juntando-me a outros que sentem as mesmas dificuldades do que eu e discutindo os Evangelhos com eles. Construtivamente, corrigindo-nos mutuamente, talvez consigamos chegar à verdade. Na tradição protestante, então, a palavra de Cristo - a verdade - emerge do debate, um debate que exige preparação prévia (ler a Bíblia), que é genuíno (porque o assunto é sério) e é construtivo (eu corrijo os erros do meu vizinho e ele corrige-me os meus).
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Se eu, pelo contrário, decidi seguir a via católica, esta questão nunca se põe. A verdadeira palavra de Cristo é aquela que a autoridade - a Igreja, o clero - diz que é. Os padres é que leram as Escrituras - não eu - e se eles dizem que é assim é porque é assim. Para a tradição católica, a verdade está na autoridade (da Igreja). Admitamos, porém, que alguém ao meu lado, que não é padre, contesta aquilo que o padre diz. Como vou eu reagir? Tratando-o mal, diminuindo-o, chamando-lhe nomes, que é isso que ele merece. Quem sabe disto é o padre, não ele. Este homem é um perturbador - o herege - que vem para aqui causar problemas e lançar a confusão.
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Percebe-se agora porque é que o diálogo ou o debate entre pessoas de um país de tradição católica é sempre destrutivo e acaba sempre em ofensas pessoais recíprocas, e porque é que tais pessoas são radicalmente surdas e intolerantes em relação a tudo aquilo que é dito por alguém que não seja quem elas, certa ou erradamente, consideram uma autoridade.
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O peso da religião na sociedade diminuiu. Porém, para quem, geração após geração durante vinte séculos foi formado nesta atitude de espírito, nada mudou. Para eu acreditar nalguma coisa preciso que seja uma autoridade a dizê-lo. Pode hoje já não ser o padre e, em última instância, o Papa. Pode ser o Einstein, o Niall Ferguson ou o John Gray. Não pode é ser o meu vizinho do lado, porque esse - isso eu tenho a certeza - é tão ignorante como eu. Compreende-se agora também, porque é que nos países de tradição católica as pessoas não têm confiança umas nas outras - excepto naquelas que estão em posição de autoridade.

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