22 abril 2009

à minha maneira


Depois de uma longa vida e uma longa obra marcada pelo anti-clericalismo, Alexandre Herculano considerava-se um homem católico. Perante esta incongruência aparente, ele dizia que era "católico à minha maneira". Esta é um característica muito importante do catolicismo. É talvez a única doutrina existente no mundo que cada homem pode abraçar "à sua maneira". Homens e mulheres muito diferentes, de todas as culturas e de todos os continentes do mundo puderam converter-se ao catolicismo porque cada um podia ser católico "à sua maneira". É este o segredo da universalidade do catolicismo.
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É a esta característica do catolicismo que me tenho referido quando falo do liberalismo católico. Ser católico significa para um homem poder ser e fazer na vida como quiser sujeito apenas a certas restricções morais que, sendo também universais, são imensamente latas e flexíveis. Quando esta cultura é aplicada na discussão de outras doutrinas - por exemplo, políticas - apresenta um sério inconveniente, que é o de tornar impossível pôr as pessoas de acordo acerca delas. Aqueles que abraçam uma certa doutrina pretendem também fazê-lo "à sua maneira" e isso torna a discussão doutrinal caótica e acaba por arruinar a doutrina.
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Acontece assim com o liberalismo. Em Portugal, existem tantas versões do liberalismo quantos os portugueses que se afirmam liberais, exprimindo assim o traço da cultura católica que permite a cada um ser "liberal à sua maneira". É claro que essas múltiplas versões individuais ou de pequeno grupo do liberalismo são, por vezes, as mais fantasiosas e totalmente falhas de objectividade. Eu tenho-me apercebido que existem na blogosfera alguns grupos que se auto-proclamam liberais e de direita e que andam à procura de construir uma doutrina política de direita com base no liberalismo. Num post que escrevi ontem, eu não poderia ter sido mais explícito: "Vocês estão enganados. Todo o liberalismo é de esquerda". O post gerou algumas reacções, como seria de esperar, porque todo o português acha, mesmo contra a realidade, que tem direito a um "liberalismo à sua maneira", o que no caso significaria um "liberalismo de direita".
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E embora todos nós lhe possamos reconhecer essa simpatia, a realidade permanece diferente. O liberalismo é de esquerda e sempre foi de esquerda. Não há liberalismos de direita, excepto aquele que eu próprio tenho designado por "liberalismo católico", mas esse não se encontra no Hayek, no von Mises, no Friedman ou em qualquer outro autor moderno, mas na doutrina da Igreja. O liberalismo, como o próprio von Mises reconheceu explicitamente é uma ideologia-irmã do socialismo, que visa os mesmos objectivos do socialismo, e que difere dele apenas nos meios para atingir esses objectivos: "Historicamente, o liberalismo foi o primeiro movimento político que almejou a promoção e o bem-estar de todos, e não de grupos sociais. O liberalismo se distingue do socialismo, que, de modo semelhante, declara lutar pelo bem de todos, não em razão do objectivo que visa, mas pelos meios que escolheu para a consecução desse objectivo" (*). A principal diferença entre eles é de meios, não de objectivos, e radica sobretudo no diferendo Estado vs. Mercado. É por isso que a discussão em Portugal entre liberais e esquerda se reduz à diferença "mete Estado, tira Estado" (ou "mete Mercado, tira Mercado"). Quanto às semelhanças: ambos, o liberalismo e o socialismo, são projectos de vida em sociedade (ideologias) que visam trazer o bem-estar material ao mundo, são internacionalistas, racionalistas, anti-religionistas, anti-elitistas, progressistas (anti-conservadores), e rejeitam a autoridade pessoalizada.
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Antes de o socialismo nascer na Europa, a esquerda europeia era largamente o liberalismo, tipificado no Whig Party inglês. Pretendendo ocupar o lugar de esquerda que até então pertencia ao liberalismo, o socialismo acusou-o de favorecer os grandes interesses económicos e conseguiu substituir-se ao liberalismo como representante da esquerda. O grande partido da esquerda na Inglaterra deixou de ser o Whig Party (liberal) e passou a ser o Labour Party (socialista). O grande partido da direita permaneceu o mesmo - o Tory Party. Também o PS em Portugal é o herdeiro dos partidos liberais do século XIX, que eram partido de esquerda. Na América do Norte onde o socialismo nunca penetrou em força, os esquerdistas continuam até hoje a ser conhecidos por liberals.
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O liberalismo foi vencido pelo socialismo como representante da esquerda. Mas isso não o tornou de direita. Fez dele apenas uma esquerda vencida. Ele foi sempre de esquerda e será sempre de esquerda. Não há volta a dar-lhe.
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(*) Ludwig von Mises, Liberalismo, Rio de Janeiro: J.O. Editora, 1987, p. 9 (tradução brasileira)

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