Num post anterior, sugeri que a cultura de inspiração protestante, que assimilei à democracia-liberal, enfatiza as instituições de justiça mais do que as instituições de verdade, e mencionei a democracia e o mercado como exemplos de instituições de justiça (fairness).
Gostaria agora de tratar outra instituição de justiça típica desses países, e na qual Portugal falha estrondosamente. Refiro-me à liberdade de expressão.
Nós devemos provavelmente a John Stuart Mill e ao seu ensaio On Liberty a ideia errada de que a liberdade de expressão serve para corrigir o erro e chegar à verdade e de que ela é, portanto, uma instituição da verdade. A realidade é diferente. A realidade é que a liberdade de expressão é uma instituição de justiça (fairness) e não uma instituição da verdade porque quem acredita na verdade não aceita a liberdade de expressão. Pelo contrário, defende a censura. A Igreja Católica é um exemplo coerente neste aspecto. De facto, a que propósito é que se deve permitir o erro litigar contra a verdade, e que vantagens é que se poderão esperar daí? Nenhumas.
Antes de prosseguir, uma observação a propósito de John Stuart Mill. Ele foi talvez o último homem de saber enciclopédico que a civilização ocidental conheceu. Sujeito a uma educação estrita desde a mais tenra idade por parte do pai, o filósofo James Mill, John teve uma vida reclusa e sujeita a um labor intelectual intenso, fazendo dele uma pessoa emocionalmente frágil. Casou tarde na vida, com Harriet Taylor, uma enfermeira viúva. A partir daí a qualidade da sua produção intelectual baixou drasticamente, como o economista F. A. Hayek, que lhe fez uma biografia, notou antes de mim, a propósito dos seus escritos económicos. O ensaio On Liberty teve a influência e a participação decisiva da mulher e mostra a influência que uma mulher pode ter sobre um homem, mesmo de primeira categoria. Embora essa influência seja generalizadamente positiva, no caso de Stuart Mill foi uma tragédia.
Voltando ao tema, o primeiro ponto que gostaria de salientar é que a liberdade de expressão surgiu nos países protestantes para resolver o conflito de religiões subsequente à Reforma Protestante. Católicos e protestantes e, dentro destes, seitas muito diferentes, em países como a Alemanha, a Inglaterra ou mesmo a França, apresentavam verdades diferentes, que eram às vezes profunda e radicalmente opostas - na realidade, verdades que até hoje se mostraram absolutamente irreconciliáveis.
Aquilo que levou estes países a adoptarem a instituição da liberdade de expressão não foi a pretensão de chegar à verdade - à qual, com efeito, nunca chegaram, seguramente que não a uma verdade única e absoluta, porque as divergências mantêm-se até hoje -, mas a tentativa de fazer justiça a cada uma das verdades em confronto. Foi a realização de que não existia uma verdade, ou de que não era fácil chegar a ela, que levou à adopção da instituição da liberdade de expressão. Se ninguém possui a Verdade, a única solução justa é a de permitir a todos exprimirem as suas respectivas verdades. Justiça ou Equidade - não a Verdade - é aquilo que a liberdade de expressão visa realizar.
Dir-se-à que, assim, não existe garantia de se chegar à Verdade. Pois não, nem isso é prioritário numa democracia. Aquilo que é prioritário é que as regras do jogo se mantenham justas e que todos tenham igual oportunidade de exprimir as suas respectivas verdades e exibam simpatia ou deferência pelas verdades dos outros da mesma maneira que esperam que os outros exibam perante as suas.
Aquilo que genuinamente caracteriza a democracia como um processo social é o de ela ser um diálogo ou uma conversa permanente, uma conversa simpática e construtiva entre pessoas ou facções que pensam de maneira diferente. Esta conversa decente e construtiva não tem nada que ver com a luta sem tréguas entre facções ou partidos que constitui a imagem de marca da democracia nos países de tradição católica.
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É aquela conversa permanente, deferente e construtiva que torna a vida pública nos países de tradição protestante e democrática uma agradável experiência de participação, ao mesmo tempo que lhes confere uma atracção irresistível aos olhos daqueles que prezam as ideias e a discussão livre das ideias - os intelectuais.
Eu nunca fiquei surpreendido por os intelectuais portugueses ou de outros países católicos ficarem seduzidos pelos países de tradição democrática, que são os países onde a Reforma protestante se produziu. Aquilo que me surpreende é, depois, vê-los comportarem-se de forma anti-democrática, procurando calar, denegrir ou excluir os outros ao abrigo da liberdade de expressão. São democratas apenas no nome, e porque eles próprios se deram o nome. Existem muitos em Portugal. São 99 em cada cem.
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