06 março 2009

Até à morte


No post anterior afirmei que o diálogo entre duas culturas é impossível e que a convivência entre elas, a prazo, não é viável. Uma tem de dominar a outra. Proponho-me neste post analisar como é que a cultura católica lida com culturas diferentes e, em seguida, fazer o mesmo para a cultura protestante. O elemento da violência em cada uma destas culturas será posto em relevo.

A cultura católica assenta na verdade, uma verdade que é única e universal. Por isso, esta cultura não tolera verdades alternativas. A questão a que agora pretendo responder é, então, a seguinte: Como é que a cultura católica lida com uma outra cultura que se instala no seu seio - como é que o povo católico reage?

A reacção espontânea da cultura católica é a de converter a cultura intrusa à sua cultura e à sua verdade. Miscigenação é a palavra de ordem da cultura católica perante este choque externo e, na realidade, a cultura católica é uma verdadeira máquina trituradora de diferenças culturais. O motor desta máquina é o liberalismo ilimitado e a tolerância extrema do seu povo que lhe confere a capacidade para aceitar e conviver praticamente com tudo e com todos e os seus contrários. A tolerância do povo católico torna-o um povo extremamente curioso e ao mesmo tempo desejoso de conviver com tudo aquilo que é estranho e, portanto, novo para ele. Dificilmente existe cultura mais sedutora para atraír - e , pelo caminho, absorver - culturas estranhas do que a cultura católica.

Esta capacidade de absorção encontra o seu limite quando a cultura intrusa se recusa à absorção e à miscigenação. É nestas circunstâncias que a cultura católica mostra o seu lado pior e se torna violenta. A violência na cultura católica decorre sempre da sua intolerância, a qual vem ao de cima quando ela se sente ameaçada por uma cultura ou uma verdade concorrente. Neste caso, faz prevalecer a sua verdade - a verdade única e universal e, portanto que não admite concorrentes -, em última instância pela violência. E como se exprime esta violência? Na expulsão. A expulsão é a forma característica de violência da cultura católica perante culturas que lhe são estranhas e se recusam à absorção.

Passo agora a analisar a cultura protestante. A reacção espontânea desta cultura a uma cultura que lhe é estranha é também de aceitação, mas não uma aceitação feita de miscigenação, como a da cultura católica, mas uma aceitação feita de segregação. A ideia em que assenta esta cultura é a ideia de justiça (equidade), a qual se obtém pela litigação entre partes que reclamam verdades diferentes e até opostas. Por isso, a cultura protestante permite manter - na realidade, incentiva - a unidade e a identidade das culturas que se estabelecem no seu seio. À homogeneidade cultural que é típica dos países católicos, os países protestantes contrapõem a imagem de um mosaico cultural e de sociedades multiculturais.
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Esta capacidade de aceitação termina quando a cultura intrusa ameaça tornar-se dominante e estabelecer uma ortodoxia, impedindo o pluralismo - isto é, a possibilidade de litigação - em que a sociedade protestante realiza o seu ideal de justiça. Sentindo-se impedida na sua capacidade para fazer justiça, a cultura protestante está então pronta a revelar o seu lado pior e a tornar-se violenta. A violência na sociedade protestante decorre sempre da vingança, que é a reacção própria de quem, sentindo-se incapaz de fazer justiça, recorre à justiça feita pelas próprias mãos. E como se exprime a violência em relação à cultura intrusa? Pela agressão. A agressão física é a forma característica de violência da cultura protestante perante uma cultura intrusa que ameaça o pluralismo em que ela realiza o seu grande ideal de justiça.

Chegado a este ponto, uma síntese é devida e alguns episódios da história devem ser trazidos à colação para testar a tese. Quanto à síntese: a causa da violência na cultura católica é a intolerância; a causa da violência na cultura protestante é a vingança. Na cultura católica a violência exprime-se pela expulsão; na cultura protestante, a violência exprime-se pela agressão.

O caso dos judeus vem imediatamente ao espírito. Portugal expulsou os judeus no século XVI porque a sua cultura católica não podia tolerar uma verdade alternativa que insistia em afirmar-se. Mas Portugal só expulsou os judeus depois de ao longo de séculos ter absorvido na sua cultura quantidades inumeráveis deles e de, no limite, ter chegado ao ponto de os obrigar à conversão. A lei da conversão dos judeus representava a solução-limite a que esta sociedade católica podia chegar antes de recorrer à violência, e era um último apelo a resolver a questão por meios pacíficos: "Submetam-se à lei, convertam-se, porque já não temos mais nenhuma solução pacífica para lidar convosco. A próxima, e última solução, usará a violência". E, na realidade, aqueles que não se submeteram à lei foram expulsos pela força.

Muito diferente foi o tratamemto dado pela Alemanha aos judeus no século XX. Em primeiro lugar, o que estava aí em causa não era um problema de concorrência entre verdades, porque a cultura protestante não se importa com isso, e até vive disso, uma vez que é a concorrência de verdades que permite a esta cultura a litigação e a realização da justiça. O que estava em causa era um problema de justiça. Os judeus eram vistos como dominando todos os sectores da vida económica, intelectual, social e política do país e, por isso, os responsáveis pela derrota da Alemanha na Primeira Guerra e pela sua calamitosa situação económica dos anos 20 e 30.

Dominando praticamente todas as instituições da sociedade, estabelecendo uma ortodoxia e impedindo o pluralismo, os judeus, aos olhos da cultura protestante dominante na Alemanha, tornavam impossível a esta cultura realizar o seu ideal - a justiça, - a qual exige litigação, diversidade, numa palavra, pluralismo. Vendo-se impedida de realizar a justiça, o seu maior ideal, a cultura protestante reagiu fazendo justiça pelas suas próprias mãos - isto é, vingando-se. Ora, a vingança, não se serve pela expulsão. Pelo contrário, serve-se pela retenção, segregando ainda mais a cultura-alvo de maneira que, quando os seus membros estiverem todos juntos e bem identificados, se possa passar à acção. E a acção em que se exprime a vingança é a agressão, a violência física sem dó nem piedade. Até à morte.

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