Compreendendo os argumentos e as razões invocadas pelo Joaquim, no post Declaração de Interesses, não posso deixar de lhe retorquir com um outro que aqui editei há alguns meses. Aqui vai (em letra reduzida, para não ocupar muito espaço).
É comum entre os liberais a convicção de que não é possível conciliar-se o liberalismo com o conservadorismo. Essa ideia parte de várias premissas, mas principalmente das que foram expostas por F. Hayek no posfácio do seu livro The Constitution of Liberty (publicado em 1960), a que deu significativamente o título de «Why I am not a Conservative». Em minha opinião, considero ultrapassadas essas razões e errado tal preconceito. Tentarei explicar porquê.
A distinção estabelecida por Hayek tem como referência a velha Inglaterra dos séculos XVII, XVIII e XIX, onde se contrapunham whigs e tories. Sucede que estes últimos estavam nessa altura mais identificados com uma ordem política avessa aos princípios do liberalismo, que os whigs representavam e defendiam. Entre eles, a defesa de um poder limitado pelo direito e pela Constituição, a separação de poderes de soberania, a liberdade civil perante o poder público, a tolerância religiosa, etc..
O conservadorismo, doutrina política que Hayek identifica com autores como Coleridge, Bonald, De Maistre, Justus Möser e Donoso Cortès, seria, assim, caracterizado pelo reaccionarismo, pelo receio da evolução das instituições, o temor da mudança, o medo ao que é novo. Daí resultaria a reacção permanente dos conservadores à inovação científica e tecnológica, às hipóteses científicas que rompem com velhos dogmas estabelecidos. Por último, os conservadores ter-se-iam aproximado nos séculos XIX e XX do estatismo, bem como de um nacionalismo exacerbado e avesso ao internacionalismo.
Estas são as críticas essenciais de Hayek ao pensamento conservador. Em compensação, ele reconhece aos conservadores uma atitude sensata em relação ao construtivismo social e político, na análise lúcida que costumam fazer da evolução das instituições sociais, onde coincidem com o ordinalismo (a importância da «ordem espontânea, meu caro Pedro...) liberal.
Ora essa convergência não é de somenos importância. Porque ela fundamenta, como aqui temos vindo a escrever, o ponto de partida do liberalismo: trata-se de uma atitude inicialmente epistemológica, que se transforma no seu princípio filosófico e político estruturante donde se desenvolvem todas as tendências liberais. A esse propósito, muito oportunamente, Miguel Freitas da Costa cita, no Futuro Presente, Owen Harris, numa passagem que poderia ser subscrita por qualquer liberal, que aqui transcrevo, agradecendo-lhe: «Há dois problemas de que os conservadores sempre tiveram aguda consciência. O primeiro é o das consequências indesejadas - de que, dada a complexidade e a inter-relação das coisas, quando se inicia um processo de mudança a grande escala põe-se em marcha muito mais do que tinha em mente o iniciador e o resultado pode ser muito diferente daquele que se pretendia. (…) O segundo problema é o da função latente. Para além das suas funções aparentes, as instituições muitas vezes desempenham outras, funções ocultas de natureza muito importante - o que pode não se tornar visível senão depois de se terem desmantelado essas instituições.»
Esta atitude crítica perante o construtivismo, quando bem compreendida, poderá ser de extrema utilidade no exercício do poder, evitando intervencionismos excessivos e desnecessários, permitindo a libertação das forças do mercado em substituição das decisões do legislador e do governante. Como, igualmente, impedirão um poder sensato de mexer na ordem social ao capricho da vontado passageira dos governantes de circunstância, respeitando as suas instituições sociais naturais.
Por outro lado, o reaccionarismo conservador do passado para com o Estado de Direito, que marcou a atitude conservadora, já não faz hoje qualquer sentido. Como o não faz, também, a crítica do nacionalismo exagerado (os conservadores têm sido, nessa matéria, frequentemente ultrapassados pelos comunistas sobreviventes à queda do Muro nas suas reservas à integração europeia, por exemplo) e do receio da internacionalização (hoje, «globalização»). O mesmo diríamos sobre as posições retrógradas contra a ciência, que sem dúvida continuam a existir, mas que não podem de modo algum ser identificadas na maioria dos conservadores. Em boa verdade, não seria difícil contra-argumentar em relação ao liberalismo, condenando-o genericamente por algumas posições anti-clericais que o marcaram no passado. Nem uma nem outra atitudes estão correctas, como é óbvio.
E o que é verdade é que se o liberalismo político tem tido alguma influência ao nível da governação nas últimas décadas, ela é devida a alguns partidos conservadores. O melhor exemplo encontramo-lo na chamada «Revolução Conservadora» da década de 80 do século passado, no Reino Unido e nos EUA, com Margareth Thatcher e Ronald Reagan. Em contrapartida, não há memória de um «partido liberal» que tenha honrado esse nome. Por isso, se há vida político-partidária para o liberalismo ela poderá ser encontrada nos partidos conservadores. Infelizmente, em Portugal, não é isso que sucede. No limite máximo, alguns dirigentes atrevem-se a dizer que são «liberais em economia» e «conservadores nos valores». Não perceberam nada de coisa alguma, como se torna evidente.
Porque, de facto, enquanto que o liberalismo é uma filosofia de valores e de princípios que poderá ser útil à praxis política, isto é, poderá inspirar quem governa, enquanto que o liberalismo é uma filosofia de cidadania, no sentido de que incute aos indivíduos uma forte pedagogia individual e social perante o poder público e o Estado, o conservadorismo poderá ser a expressão desses mesmos valores na sociedade e na organização política.
De resto, tranquilamente conformado, diria mesmo, entusiasmado com o Estado de Direito, a democracia, a economia de mercado, a ciência e a liberdade de culto, não restam, nos dias de hoje, ao conservadorismo quaisquer valores do passado. Como, também, não criou quaisquer outros para o futuro, só o liberalismo lhe poderá dar o sentido teórico e os fundamentos filosóficos de que tanto tem sentido a falta.
É comum entre os liberais a convicção de que não é possível conciliar-se o liberalismo com o conservadorismo. Essa ideia parte de várias premissas, mas principalmente das que foram expostas por F. Hayek no posfácio do seu livro The Constitution of Liberty (publicado em 1960), a que deu significativamente o título de «Why I am not a Conservative». Em minha opinião, considero ultrapassadas essas razões e errado tal preconceito. Tentarei explicar porquê.
A distinção estabelecida por Hayek tem como referência a velha Inglaterra dos séculos XVII, XVIII e XIX, onde se contrapunham whigs e tories. Sucede que estes últimos estavam nessa altura mais identificados com uma ordem política avessa aos princípios do liberalismo, que os whigs representavam e defendiam. Entre eles, a defesa de um poder limitado pelo direito e pela Constituição, a separação de poderes de soberania, a liberdade civil perante o poder público, a tolerância religiosa, etc..
O conservadorismo, doutrina política que Hayek identifica com autores como Coleridge, Bonald, De Maistre, Justus Möser e Donoso Cortès, seria, assim, caracterizado pelo reaccionarismo, pelo receio da evolução das instituições, o temor da mudança, o medo ao que é novo. Daí resultaria a reacção permanente dos conservadores à inovação científica e tecnológica, às hipóteses científicas que rompem com velhos dogmas estabelecidos. Por último, os conservadores ter-se-iam aproximado nos séculos XIX e XX do estatismo, bem como de um nacionalismo exacerbado e avesso ao internacionalismo.
Estas são as críticas essenciais de Hayek ao pensamento conservador. Em compensação, ele reconhece aos conservadores uma atitude sensata em relação ao construtivismo social e político, na análise lúcida que costumam fazer da evolução das instituições sociais, onde coincidem com o ordinalismo (a importância da «ordem espontânea, meu caro Pedro...) liberal.
Ora essa convergência não é de somenos importância. Porque ela fundamenta, como aqui temos vindo a escrever, o ponto de partida do liberalismo: trata-se de uma atitude inicialmente epistemológica, que se transforma no seu princípio filosófico e político estruturante donde se desenvolvem todas as tendências liberais. A esse propósito, muito oportunamente, Miguel Freitas da Costa cita, no Futuro Presente, Owen Harris, numa passagem que poderia ser subscrita por qualquer liberal, que aqui transcrevo, agradecendo-lhe: «Há dois problemas de que os conservadores sempre tiveram aguda consciência. O primeiro é o das consequências indesejadas - de que, dada a complexidade e a inter-relação das coisas, quando se inicia um processo de mudança a grande escala põe-se em marcha muito mais do que tinha em mente o iniciador e o resultado pode ser muito diferente daquele que se pretendia. (…) O segundo problema é o da função latente. Para além das suas funções aparentes, as instituições muitas vezes desempenham outras, funções ocultas de natureza muito importante - o que pode não se tornar visível senão depois de se terem desmantelado essas instituições.»
Esta atitude crítica perante o construtivismo, quando bem compreendida, poderá ser de extrema utilidade no exercício do poder, evitando intervencionismos excessivos e desnecessários, permitindo a libertação das forças do mercado em substituição das decisões do legislador e do governante. Como, igualmente, impedirão um poder sensato de mexer na ordem social ao capricho da vontado passageira dos governantes de circunstância, respeitando as suas instituições sociais naturais.
Por outro lado, o reaccionarismo conservador do passado para com o Estado de Direito, que marcou a atitude conservadora, já não faz hoje qualquer sentido. Como o não faz, também, a crítica do nacionalismo exagerado (os conservadores têm sido, nessa matéria, frequentemente ultrapassados pelos comunistas sobreviventes à queda do Muro nas suas reservas à integração europeia, por exemplo) e do receio da internacionalização (hoje, «globalização»). O mesmo diríamos sobre as posições retrógradas contra a ciência, que sem dúvida continuam a existir, mas que não podem de modo algum ser identificadas na maioria dos conservadores. Em boa verdade, não seria difícil contra-argumentar em relação ao liberalismo, condenando-o genericamente por algumas posições anti-clericais que o marcaram no passado. Nem uma nem outra atitudes estão correctas, como é óbvio.
E o que é verdade é que se o liberalismo político tem tido alguma influência ao nível da governação nas últimas décadas, ela é devida a alguns partidos conservadores. O melhor exemplo encontramo-lo na chamada «Revolução Conservadora» da década de 80 do século passado, no Reino Unido e nos EUA, com Margareth Thatcher e Ronald Reagan. Em contrapartida, não há memória de um «partido liberal» que tenha honrado esse nome. Por isso, se há vida político-partidária para o liberalismo ela poderá ser encontrada nos partidos conservadores. Infelizmente, em Portugal, não é isso que sucede. No limite máximo, alguns dirigentes atrevem-se a dizer que são «liberais em economia» e «conservadores nos valores». Não perceberam nada de coisa alguma, como se torna evidente.
Porque, de facto, enquanto que o liberalismo é uma filosofia de valores e de princípios que poderá ser útil à praxis política, isto é, poderá inspirar quem governa, enquanto que o liberalismo é uma filosofia de cidadania, no sentido de que incute aos indivíduos uma forte pedagogia individual e social perante o poder público e o Estado, o conservadorismo poderá ser a expressão desses mesmos valores na sociedade e na organização política.
De resto, tranquilamente conformado, diria mesmo, entusiasmado com o Estado de Direito, a democracia, a economia de mercado, a ciência e a liberdade de culto, não restam, nos dias de hoje, ao conservadorismo quaisquer valores do passado. Como, também, não criou quaisquer outros para o futuro, só o liberalismo lhe poderá dar o sentido teórico e os fundamentos filosóficos de que tanto tem sentido a falta.
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