19 novembro 2007

mantido pela fé

Provavelmente, nenhum outro processo económico, como o processo da criação de dinheiro, ilustra tão bem como uma sociedade para funcionar precisa de fé - e de fé genuína.

Dinheiro é tudo aquilo que serve para efectuar pagamentos. As notas em poder do público mais os saldos das contas de depósito à ordem (sobre os quais se podem passar cheques ou fazer transferências bancárias) são dois activos que ocorrem imediatamente ao espírito. Eles constituem a definição de dinheiro a que os economistas chamam M-1: notas em poder do público mais depósitos à ordem.
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O processo de criação de dinheiro é normalmente desencadeado pelo banco central comprando títulos da dívida pública, e depende criticamente dos hábitos do público no que respeita ao levantamento dos seus depósitos. Se por experiência se sabe que da totalidade dos depósitos existentes nos bancos, em cada momento o público não levanta mais de 5%, então basta aos bancos guardarem 5% dos depósitos sob a forma de notas, podendo emprestar o restante. A taxa de reservas obrigatórias (5%) é fixada por lei.

O Estado americano possui um défice de $1000. Emite títulos da dívida pública que vende ao Fed, o qual paga os títulos com notas saídas da máquina impressora e entrega-as ao Treasury Department (TD). A quantidade de dinheiro em circulação, neste momento, é de $1000 em notas, na posse do TD.

O TD utiliza os $1000 para pagar aos seus fornecedores, por exemplo, ao Ricardo que trabalha para o Governo como consultor militar. O Ricardo deposita este montante no Banco A. Este Banco guarda 5% como reservas ($50) e concede um empréstimo de $950 ao António para comprar uma bicicleta. A quantidade de dinheiro em circulação subiu para $1950, dos quais $1000 são depósitos (Ricardo) e $950 são notas em poder do António. (NB.: os $50 em notas detidos pelo Banco A sob a forma de reservas não são dinheiro, porque não podem servir como meio de pagamento; estão lá para fazer face aos levantamentos sobre as contas de depósito).

O António compra a bicicleta ao Francisco por $950. Este deposita os $950 no Banco B. O Banco guarda 5% ($47.5) como reservas e empresta o restante ($902.5) ao Bruno que precisa de comprar uma mobília. A quantidade de dinheiro em circulação subiu agora para $2852.5, dos quais $1950 são depósitos (Ricardo e Francisco) e $902.5 são notas em poder do Bruno.

O Bruno compra a mobília à Cecília por $902.5. Esta deposita os $902.5 no Banco C. Este guarda 5% em reservas ($45.125) e empresta o restante ($857.375) à Sofia para esta comprar um vestido. A quantidade de dinheiro em circulação subiu agora para ($3709.675), dos quais $2852.5 são depósitos (Ricardo, Francisco e Cecília) e $857.375 são notas em poder da Sofia.

Prosseguindo este processo indefinidamente, a quantidade de dinheiro acabará por subir a $20000 sob a forma de depósitos (Ricardo, Francisco, Cecília, ...), enquanto os $1000 em notas emitidas pelo Fed estarão em reservas nos bancos ($50 no Banco A, $47.5 no Banco B, $45.125 no Banco C, ...), e, neste sentido, não contam como dinheiro.

A emissão de $1000 em notas pelo Fed aumentou a quantidade de dinheiro (M-1) em circulação no montante de $20000, sob a forma de depósitos. A esta relação (20) dá-se o nome de multiplicador do crédito, o qual é o inverso da taxa de reservas obrigatórias (1 a dividir por 5%).

O Ricardo não tem dúvidas que possui um depósito de $1000 no Banco A, o Francisco um depósito de $950 no Banco B, a Cecília um depósito de $902.5 no Banco C, e assim por diante para os outros depositantes num total de $20000 em depósitos.

Pura ilusão, porque os bancos onde eles depositaram o dinheiro não possuem, em conjunto, mais de $1000 em notas para fazer face a esses depósitos. Porém, enquanto esta ilusão persistir tudo corre bem. Somente no dia em que eles forem todos ao mesmo tempo levantar os seus depósitos aos bancos é que a realidade será revelada - os bancos não possuem mais de $1000 para fazer face aos levantamentos.

Nesse dia, os bancos vão à falência e o Ricardo, o Francisco, a Cecília, ..., ficarão sem o seu dinheiro e a saber que, na realidade, as suas contas de depósito eram pura ilusão. O sistema financeiro é mantido pela fé que todos nós possuímos que o dinheiro que depositamos nos bancos está lá para quando o quisermos levantar. Na realidade, não está.

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