10 agosto 2007

milagre

Depois da II Grande Guerra os EUA assumiram uma posição de predomínio incontestável na economia mundial. Este predomínio foi frequentemente atribuido à superioridade do seu sistema económico e à ética judaico-protestante prevalecente no país, com o seu ênfase no mercado, no sector privado, na concorrência e no capitalismo.

Eu estou hoje muito céptico acerca desta tese. Sou tentado muito mais a pensar que o diferencial de crescimento económico na América, face às grandes economias da Europa e da Ásia, ficou muito mais a dever-se a uma instituição do Estado - o seu banco central ou Reserva Federal.

À saída da Guerra, os EUA eram o único grande país não devastado por ela. Em 1946 foi assinado o acordo de Bretton Woods que punha de pé o novo sistema financeiro internacional. Todos os bancos centrais do mundo, podiam emitir dinheiro contra a entrada nos seus cofres de ouro ou de dólares americanos; a Reserva Federal americana só poderia emitir dólares contra reservas em ouro. As taxas de câmbio eram fixas e o preço do ouro era fixo em termos do dólar

Este sistema assegurava que, em última instância, o dinheiro que circulava nos diferentes países do mundo estava garantido em ouro - desde que os EUA respeitassem o seu compromisso de nunca emitir dólares para além das suas reservas em ouro. Porém, os EUA não respeitaram esse compromisso: financiaram a guerra do Vietname e uma boa parte da properidade dos anos 60 e 70 emitindo dólares para além das suas reservas de ouro. O caso foi descoberto em 1971. Foi, então, cortada a ligação entre o ouro e o dólar e as taxas de câmbio deixaram de ser fixas, passando a variar com as forças da oferta e da procura entre as diferentes moedas.

A partir de então, a emissão monetária em todos os países - excepto os EUA -, passou a assentar predominantemente no dólar e na confiança depositada na economia americana. Alguns bancos centrais venderam as suas reservas de ouro na totalidade, outros reduziram-nas drasticamente. O ouro perdera a sua função de reserva de valor. A reserva de qualquer banco central passou a ser predominantemente em dólares, porque esses dólares podiam comprar bens e serviços produzidos nos EUA. Pelo contrário, a reserva das emissões de dólares feitas pela a Reserva Federal americana era ar puro, para além de algumas toneladas de ouro trazidas do passado, mas já sem qualquer relação com a emissão monetária.

Para os americanos, passou então a ser crucial que o mundo mantivesse a confiança na sua economia, porque só assim os EUA poderiam manter a situação privilegiada de serem o banco central do mundo, emitindo dólares contra ar puro e adquirindo ao exterior bens e serviços com esse papel. A prosperidade, o poderio económico - e, bem assim, político e militar - e o aumento do nível de vida da América face ao resto do mundo não deveriam surpreender num arranjo assim.

Porém, para manter a confiança do resto do mundo na sua economia, a América tinha de aparentar bons indicadores económicos, e em particular um crescimento do PIB acima do par. E isso conseguia-se emitindo mais dólares - isto é, baixando as taxas de juro - e financiando défices orçamentais nunca antes vistos, exigidos pela guerra do Iraque, pelas reduções drásticas dos impostos e por outras políticas expansionistas de responsabilidade questionável.

Os dólares emitidos acabam, em grande parte, nos bancos, sob a forma de depósitos. Os bancos são instituições que visam o lucro e não podem ter dinheiro inactivo, para além daquele nível de reservas obrigatórias que é exigido por lei. O excesso é para emprestar, cobrando um juro superior ao que pagam sobre os depósitos. Por isso, quanto mais emissão monetária, mais empréstimos.

Pode parecer que o problema dos bancos seria agora o de arranjar clientes potenciais que queiram tomar dinheiro de empréstimo. Mas esse não é, na realidade, um problema muito grande: quem não quer comprar uma casa nova, fazer uma grande viagem de sonho ou adquirir o último modelo de automóvel aparecido no mercado? E quando se esgotarem os clientes que podem pagar os empréstimos, não resta aos bancos outra solução senão a de emprestarem àqueles cuja situação económica e financeira torna mais ou menos óbvio que nunca pagarão os empréstimos concedidos.

Quer uma casa e não tem dinheiro para a pagar, nem sequer rendimentos que façam presumir que a pode vir um dia a pagar?. Não faz mal, emprestamos na mesma. Até ao dia em que estes clientes de risco mais do que duvidoso não paguem mesmo os empréstimos que, desde o início, já se presumia que nunca iriam pagar.

É o que está agora a acontecer - a crise no chamado subprime mortgage market (mercado de empréstimos hipotecários de segunda linha) - com efeitos de arrastamento a todos os países do mundo. As Bolsas estão em queda acentuada, há quem já lhe chame pânico.

Mas é preciso reconhecer que este milagre de fornecer casas a quem não as pode pagar - bem como viagens, automóveis e cartões de crédito - não foi um milagre de Deus. Foi um milagre do Estado e dos políticos da democracia - americanos em primeiro lugar - que o mercado depois ampliou.

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