Desde que o constitucionalismo se impôs, no século XIX, às monarquias europeias, o pacto social e político estabelecido foi este: a Chefia de Estado mantinha-se monárquica, isto é, a sua titularidade era determinada pelas normas da sucessão dinástica, mas o rei não dispunha, de facto, de nenhum dos três poderes que o liberalismo constitucional consagrara: o legislativo, o executivo e o judicial. Na verdade, apesar de formalmente o Rei ser o chefe do executivo (isto é, do governo da Nação), como o consagram os nossos três textos constitucionais do período monárquico - Constituição de 1822 (arts. 121º e ss.), Carta Constitucional de 1826 (arts. 75º e ss.) e Constituição de 1838 (arts. 80º e ss.), o curso dos factos e a lógica dos novos regimes ia no sentido de esvaziar, por completo, o rei de outras funções que não as da simples representação formal do Estado. Em 1822, o executivo residia no «Rei e nos Secretários de Estado, que o exerciam sob a autoridade do mesmo Rei» (art.30º); em 1826, considerava-se que «o Rei é o Chefe do poder Executivo, e o exercita pelos seus Ministros de Estado» (art. 75º); e, em 1838, dizia-se que «o Rei é o Chefe do Poder Executivo, e o exerce pelos Ministros e Secretários de Estado» (art. 80º). As sucessivas Constituições outrogaram o poder político aos governos que, embora nomeados pelo Rei, eram, de facto, completamente autónomos da sua autoridade. Disto mesmo dependia a legitimidade constitucional dos novos regimes, assentando na convicção de que a legitimidade do poder decorria do direito emanado do povo ou da nação, consoante as COnstituições fossem mais ou menos radicais, e não do sangue herdado.
Quem, na verdade, governava o país era o Ministério, cujo chefe era naturalmente indicado pelo Rei, de acordo com a composição das Cortes, em 1822, e da Câmara dos Deputados (câmara baixa do parlamento), em 1826 e 1838. O princípio da legitimidade do poder estava, assim, na própria representatividade do Parlamento, embora esta fosse ainda muito reduzida. Para salvar a face da coroa, a Carta Constitucional praticamente em vigor de 1826 a 1910, com as interrupções de 1828 a 1834 e de 1838 a 1842, introduziu nos seus arts 71º e ss. o poder moderador, invenção de Benjamin Constant, que hoje é ainda invocada nas repúblicas parlamentares, que não é verdadeiro poder de soberania, como todos sabemos.
Isto, apenas para dizer que, em momento algum, o constitucionalismo oitocentista admitiu que ao Rei coubessem poderes senão os protocolares e, quando muito, de equilíbrio institucional. O que, certamente, não significa que ao longo do século XIX não tenham existido, em Portugal e no estrangeiro, momentos de transição e de compromisso. Chamaram-se monarquias limitadas, assentavam ainda no princípio monárquico e não eram ainda verdadeiras monarquias constitucionais.
Pode, portanto, afirmar-se que não existem regimes mistos em democracia constitucional e liberal, assentes num poder legislativo e executivo partilhados pelo parlamento, pelo rei e pelo governo. Essas monarquias, quando existiram, não foram constitucionais, nem liberais, nem visaram alcançar o Estado de Direito. Foi, por exemplo e retomando o caso português, o que sucedeu com D. Miguel que, tendo jurado a Carta, a suspendeu assim que assumiu a regência da coroa, em Março de 1828. Quando, também, declarou extinta a Câmara dos Deputados e reuniu as Cortes, à boa maneira estamental, convocando o clero, a nobreza e o povo.
Os chamados regimes mistos nas democracias liberais e constitucionais são baseados em dois pilares: num parlamento eleito em sufrágio universal directo e num chefe de Estado eleito em sufrágio universal directo. Dos quais resulta um governo com maioria parlamentar, mas politicamente responsável perante o presidente. São os sistemas de governo semipresidencialistas, na designação de Maurice Duverger, dos quais são exemplos actuais a França, Portugal, a Irlanda, embora estes dois últimos exemplos tenham vindo a acentuar mais o seu pendor parlamentar em detrimento do presidencial.
Já quando se fala em Estados monárquicos ou republicanos, atendemos à forma política que a chefia do Estado assume. Quando queremos referir a distribuição de poderes e competências, referimo-nos ao parlamentarismo, ao presidencialismo e ao semipresidencialismo, estando a qualificar os sistemas de governo. Tratam-se de planos paralelos e, em democracia liberal, nunca convergentes. Ou seja: o poder tem de legitimar-se nas urnas, através do voto, não sendo possível um chefe Estado monárquico exercer funções de soberania, o mesmo se passando com os presidentes não eleitos em sufrágio universal (é o caso dos parlamentarismos italiano e alemão). Mas já um chefe de Estado eleito em sufrágio universal poderá exercer o poder executivo, como ocorre nos sistemas de governo presidencialistas, dos quais são exemplos o Brasil e os EUA. Só que, nestes casos, o chefe de Estado é também chefe do Governo, porque foi eleito. Os sistemas semipresidencialistas, estes sim podem considerar-se mistos, na medida em que a designação e manutenção do governo dependem de um parlamento eleito e de um chefe de Estado eleito por sufrágio universal. O que nunca existe, volta a frisar-se, pelo menos no constitucionalismo liberal e democrático, é poder político soberano a ser exercido por dignatários não eleitos em sufrágio universal. Nem reis nem presidentes.
Refira-se, por último, a questão da democracia: quando alguns liberais a questionam, não é para a substituir por outra forma de designação dos titulares dos órgãos de soberania. É para a melhorar, alterando, por exemplo, os regras dos sufrágios ou a tipologia e duração dos mandatos. E, sobretudo, para que se compreenda que um poder democraticamente eleito não lhe confere legitimidade para vir a ser um poder ilimitado, como infelizmente tende a suceder actualmente. O liberalismo e a soberania popular rousseauniana nunca andaram de braço dado.
Em suma, o liberalismo explica porque é que o poder tem de ser limitado e que limites nunca poderá ultrapassar. A democracia é um método de escolha dos governantes. Infelizmente, actualmente, por via da lei, certos governantes democraticamente eleitos julgam que o mandato popular lhes confere uma soberania inesgotável, enquadrada na lei que eles próprios fazem. Aqui reside o essencial da crítica liberal ao método democrático: é que ele se trata exactamente de um método e não de um fim em si mesmo.
Adaptado de um texto original do Catalaxia.
Quem, na verdade, governava o país era o Ministério, cujo chefe era naturalmente indicado pelo Rei, de acordo com a composição das Cortes, em 1822, e da Câmara dos Deputados (câmara baixa do parlamento), em 1826 e 1838. O princípio da legitimidade do poder estava, assim, na própria representatividade do Parlamento, embora esta fosse ainda muito reduzida. Para salvar a face da coroa, a Carta Constitucional praticamente em vigor de 1826 a 1910, com as interrupções de 1828 a 1834 e de 1838 a 1842, introduziu nos seus arts 71º e ss. o poder moderador, invenção de Benjamin Constant, que hoje é ainda invocada nas repúblicas parlamentares, que não é verdadeiro poder de soberania, como todos sabemos.
Isto, apenas para dizer que, em momento algum, o constitucionalismo oitocentista admitiu que ao Rei coubessem poderes senão os protocolares e, quando muito, de equilíbrio institucional. O que, certamente, não significa que ao longo do século XIX não tenham existido, em Portugal e no estrangeiro, momentos de transição e de compromisso. Chamaram-se monarquias limitadas, assentavam ainda no princípio monárquico e não eram ainda verdadeiras monarquias constitucionais.
Pode, portanto, afirmar-se que não existem regimes mistos em democracia constitucional e liberal, assentes num poder legislativo e executivo partilhados pelo parlamento, pelo rei e pelo governo. Essas monarquias, quando existiram, não foram constitucionais, nem liberais, nem visaram alcançar o Estado de Direito. Foi, por exemplo e retomando o caso português, o que sucedeu com D. Miguel que, tendo jurado a Carta, a suspendeu assim que assumiu a regência da coroa, em Março de 1828. Quando, também, declarou extinta a Câmara dos Deputados e reuniu as Cortes, à boa maneira estamental, convocando o clero, a nobreza e o povo.
Os chamados regimes mistos nas democracias liberais e constitucionais são baseados em dois pilares: num parlamento eleito em sufrágio universal directo e num chefe de Estado eleito em sufrágio universal directo. Dos quais resulta um governo com maioria parlamentar, mas politicamente responsável perante o presidente. São os sistemas de governo semipresidencialistas, na designação de Maurice Duverger, dos quais são exemplos actuais a França, Portugal, a Irlanda, embora estes dois últimos exemplos tenham vindo a acentuar mais o seu pendor parlamentar em detrimento do presidencial.
Já quando se fala em Estados monárquicos ou republicanos, atendemos à forma política que a chefia do Estado assume. Quando queremos referir a distribuição de poderes e competências, referimo-nos ao parlamentarismo, ao presidencialismo e ao semipresidencialismo, estando a qualificar os sistemas de governo. Tratam-se de planos paralelos e, em democracia liberal, nunca convergentes. Ou seja: o poder tem de legitimar-se nas urnas, através do voto, não sendo possível um chefe Estado monárquico exercer funções de soberania, o mesmo se passando com os presidentes não eleitos em sufrágio universal (é o caso dos parlamentarismos italiano e alemão). Mas já um chefe de Estado eleito em sufrágio universal poderá exercer o poder executivo, como ocorre nos sistemas de governo presidencialistas, dos quais são exemplos o Brasil e os EUA. Só que, nestes casos, o chefe de Estado é também chefe do Governo, porque foi eleito. Os sistemas semipresidencialistas, estes sim podem considerar-se mistos, na medida em que a designação e manutenção do governo dependem de um parlamento eleito e de um chefe de Estado eleito por sufrágio universal. O que nunca existe, volta a frisar-se, pelo menos no constitucionalismo liberal e democrático, é poder político soberano a ser exercido por dignatários não eleitos em sufrágio universal. Nem reis nem presidentes.
Refira-se, por último, a questão da democracia: quando alguns liberais a questionam, não é para a substituir por outra forma de designação dos titulares dos órgãos de soberania. É para a melhorar, alterando, por exemplo, os regras dos sufrágios ou a tipologia e duração dos mandatos. E, sobretudo, para que se compreenda que um poder democraticamente eleito não lhe confere legitimidade para vir a ser um poder ilimitado, como infelizmente tende a suceder actualmente. O liberalismo e a soberania popular rousseauniana nunca andaram de braço dado.
Em suma, o liberalismo explica porque é que o poder tem de ser limitado e que limites nunca poderá ultrapassar. A democracia é um método de escolha dos governantes. Infelizmente, actualmente, por via da lei, certos governantes democraticamente eleitos julgam que o mandato popular lhes confere uma soberania inesgotável, enquadrada na lei que eles próprios fazem. Aqui reside o essencial da crítica liberal ao método democrático: é que ele se trata exactamente de um método e não de um fim em si mesmo.
Adaptado de um texto original do Catalaxia.
2 comentários:
Como se chama um sistema de governo em que o poder executivo cabe ao presidente, o legislador ao primeiro ministro, e o moderador, ao chefe da oposição?
ehehehhe
Não concordo inteiramente, como o Rui A. sabe (meu neocartismo oblige) e julgo que a existência de uma câmara alta não eleita directamente nalguns sistemas constitucionais (do século XIX e não só) - parcialmente detentora da potestade legislativa - também baralha um pouco estas conclusões.
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