Existe uma propensão relativamente recente entre alguns liberais para desculpabilizarem Thomas Hobbes (1588-1679), retirando-lhe parte significativa da carga pejorativa de ter sido um dos contratualistas, talvez mesmo o primeiro, defensores do Estado absolutista. Em Portugal, André Azevedo Alves faz no seu livro Ordem, Estado e Liberdade uma excelente abordagem dessas opiniões, tendo como referência a análise tolerante de Michael Oakeshott, segundo a qual Hobbes é frequentemente mal lido, já que o Estado que propugna não é inimigo do indivíduo e dos seus direitos, mas «a condição mínima de qualquer associação estabelecida entre indivíduos». Como pressuposto desta hipótese está a convicção de que o Estado hobbesiano se encontra ao serviço dos indivíduos e não, como em Maquiavel, dos interesses egoístas do príncipe. Daqui a considerá-lo um autor útil ao liberalismo (ainda que não exactamente um liberal), vai um pequeno passo.
Não creio, contudo, que esta perspectiva resista a uma análise detalhada do pensamento do filósofo inglês, que resulta primordialmente das suas duas obras políticas mais importantes, a saber, The Elements of Law Natural and Politic e o Leviathan. Se, na verdade, o Estado é, em Hobbes, um instrumento ao serviço de uma finalidade, e se a sua instituição resulta de uma intenção volitiva dos membros da comunidade, ou seja, não é um dado da natureza humana, mas um produto da vontade racional dos homens, nada legitima que se retire a conclusão que esse aparelho do poder se encontra ao serviço da liberdade, dos indivíduos e da defesa dos seus direitos fundamentais, nomeadamente da propriedade.
Situemo-nos, primordialmente, na perspectiva contratualista de Hobbes. Ela é exposta claramente no capítulo XVII do Leviathan, onde é dito que o Estado resulta de um pacto estabelecido entre cada homem e o soberano (um homem singular ou uma assembleia popular ou aristocrática), pelo qual o primeiro transfere de forma ilimitada o direito de se governar a si próprio. Se é certo que a instituição de Estado soberano é fruto do consentimento dos governados, no que Hobbes se poderia, de facto, aproximar dos contratualistas liberais, o que não deixa lugar a dúvidas é o seu categórico imperativo social. Para o filósofo inglês, o Estado é a única maneira de assegurar a sobrevivência das sociedades humanas, naturalmente conflituosas e destrutivas, em estado de natureza de guerra permanente. Não deixa de ser curioso constatar que Hobbes admite que esta conflitualidade natural é resultado da igualdade entre os homens, nomeadamente das suas capacidades físicas e intelectuais, que ele considera não diferirem substancialmente. Porém, deste ponto de partida que o poderia conduzir à defesa de direitos fundamentais individuais e a prerrogativas de liberdade inalienáveis dos súbditos perante o soberano, resulta precisamente o inverso: a afirmação do contrato social como pactum subjectionis e não como pactum liberationis. Pior ainda: sendo este um pacto colectivo, não pode um indivíduo abandoná-lo unilateralmente, sujeitando-se as minorias a toda e qualquer deliberação da maioria de transferir a soberania para um soberano concreto (Capítulo XVIII). Esta fundamentação da democracia representativa é, salvo melhor opinião, fundamento igualmente válido para o totalitarismo democrático não respeitador da vontade e dos direitos das minorias. Um dos males de que padecem as democracias contemporâneas.
Deste último aspecto retira Hobbes o seu conceito de propriedade: «pertence à soberania todo o poder de prescrever as regras através das quais todo o homem pode saber quais os bens de que pode gozar, e quais as acções que pode praticar, sem ser incomodado por qualquer dos seus concidadãos: é a isto que os homens chamam propriedade» (Capítulo XVIII). Ao invés do contratualismo liberal, onde o Estado se justifica pela defesa da propriedade, em Hobbes ele cumpre também essa missão, embora seja impensável conceber esse direito, ou qualquer outro, fora dele. Não existe, tão pouco, no seu elenco de direitos fundamentais, ou de «leis naturais (Capítulo XIV), a ideia da propriedade como direito individual inalienável e absoluto perante as prerrogativas de soberania. Mais grave ainda: nem a liberdade (que é definida como «o poder de cada um fazer o que quer») é um direito absoluto. Ele é mesmo um direito relativo, perante a necessidade de instituir o Estado e de evitar «o direito de cada homem a todas as coisas», próprio do estado de natureza, origem da impossibilidade de definir direitos individuais e gerador de insegurança e de estado de guerra de «todos contra todos».
Resta acrescentar que Thomas Hobbes é, muito evidentemente, um soberanista, no sentido de que pressupõe, à semelhança de Rousseau, de quem seria, neste ponto em concreto, um precursor, a indivisibilidade do poder político estatal (Capítulo XVIII). Se para Rousseau a soberania era «vollonté généralle», Hobbes afirmou que «cada súbdito é autor de todos os actos praticados pelo soberano». Por isso, não só a soberania seria infalível, como teria que ser ilimitada (Capítulo XXI). Não é, por conseguinte, errado afirmar-se que Thomas Hobbes é o primeiro iluminista teoricamente consistente.
Por fim, diga-se em abono da verdade e do próprio, que o Estado hobbesiano é um Estado finalista, isto é, encontra-se ao serviço de finalidades que o transcendem. Este aspecto é talvez o único que aproxima Hobbes de qualquer ideia de liberdade. Para ele, o estado de natureza era incompatível com a segurança particular e sem esta os homens não poderiam aspirar a ter direitos e a realizá-los. A ideia é naturalmente discutível, como o foi efectivamente pouco tempo depois por John Locke. O fim primordial e derradeiro do Estado absolutista hobbesiano era a realização individual e o bem comum. Mas estes são sempre os fins últimos invocados por todas as tiranias. E não deverão servir, em conclusão, para justificar todos e quaisquer meios à disposição da soberania.
Diríamos, assim, que Thomas Hobbes é, por excelência, o filósofo do absolutismo. Se Jean Bodin «inventou» a soberania do Estado, Hobbes fundamentou-a, ampliou-a ao ponto de a tornar ilimitada e entregou-a nas mãos livres do príncipe. Mais tarde, Jean-Jacques Rousseau haveria de a fazer definitivamente popular.
Nesta medida, o único ensinamento que o liberalismo poderá retirar da filosofia política de Hobbes é a de que o poder é naturalmente expansivo e tende para a ausência de limites, se estes não lhe forem impostos pelos seus destinatários. Mas, ainda assim, sempre prefiro e considero, neste aspecto em concreto, muito mais útil o pensamento realista de Maquivel, para quem o poder soberano era, ou podia ser, absoluto, se bem que o seu fundamento se devesse procurar simplesmente na vontade, nos interesses e na vaidade pessoal dos seus titulares, para quem o bem comum não se distinguia do seu próprio objectivo de conquistar e manter o poder.
Não creio, contudo, que esta perspectiva resista a uma análise detalhada do pensamento do filósofo inglês, que resulta primordialmente das suas duas obras políticas mais importantes, a saber, The Elements of Law Natural and Politic e o Leviathan. Se, na verdade, o Estado é, em Hobbes, um instrumento ao serviço de uma finalidade, e se a sua instituição resulta de uma intenção volitiva dos membros da comunidade, ou seja, não é um dado da natureza humana, mas um produto da vontade racional dos homens, nada legitima que se retire a conclusão que esse aparelho do poder se encontra ao serviço da liberdade, dos indivíduos e da defesa dos seus direitos fundamentais, nomeadamente da propriedade.
Situemo-nos, primordialmente, na perspectiva contratualista de Hobbes. Ela é exposta claramente no capítulo XVII do Leviathan, onde é dito que o Estado resulta de um pacto estabelecido entre cada homem e o soberano (um homem singular ou uma assembleia popular ou aristocrática), pelo qual o primeiro transfere de forma ilimitada o direito de se governar a si próprio. Se é certo que a instituição de Estado soberano é fruto do consentimento dos governados, no que Hobbes se poderia, de facto, aproximar dos contratualistas liberais, o que não deixa lugar a dúvidas é o seu categórico imperativo social. Para o filósofo inglês, o Estado é a única maneira de assegurar a sobrevivência das sociedades humanas, naturalmente conflituosas e destrutivas, em estado de natureza de guerra permanente. Não deixa de ser curioso constatar que Hobbes admite que esta conflitualidade natural é resultado da igualdade entre os homens, nomeadamente das suas capacidades físicas e intelectuais, que ele considera não diferirem substancialmente. Porém, deste ponto de partida que o poderia conduzir à defesa de direitos fundamentais individuais e a prerrogativas de liberdade inalienáveis dos súbditos perante o soberano, resulta precisamente o inverso: a afirmação do contrato social como pactum subjectionis e não como pactum liberationis. Pior ainda: sendo este um pacto colectivo, não pode um indivíduo abandoná-lo unilateralmente, sujeitando-se as minorias a toda e qualquer deliberação da maioria de transferir a soberania para um soberano concreto (Capítulo XVIII). Esta fundamentação da democracia representativa é, salvo melhor opinião, fundamento igualmente válido para o totalitarismo democrático não respeitador da vontade e dos direitos das minorias. Um dos males de que padecem as democracias contemporâneas.
Deste último aspecto retira Hobbes o seu conceito de propriedade: «pertence à soberania todo o poder de prescrever as regras através das quais todo o homem pode saber quais os bens de que pode gozar, e quais as acções que pode praticar, sem ser incomodado por qualquer dos seus concidadãos: é a isto que os homens chamam propriedade» (Capítulo XVIII). Ao invés do contratualismo liberal, onde o Estado se justifica pela defesa da propriedade, em Hobbes ele cumpre também essa missão, embora seja impensável conceber esse direito, ou qualquer outro, fora dele. Não existe, tão pouco, no seu elenco de direitos fundamentais, ou de «leis naturais (Capítulo XIV), a ideia da propriedade como direito individual inalienável e absoluto perante as prerrogativas de soberania. Mais grave ainda: nem a liberdade (que é definida como «o poder de cada um fazer o que quer») é um direito absoluto. Ele é mesmo um direito relativo, perante a necessidade de instituir o Estado e de evitar «o direito de cada homem a todas as coisas», próprio do estado de natureza, origem da impossibilidade de definir direitos individuais e gerador de insegurança e de estado de guerra de «todos contra todos».
Resta acrescentar que Thomas Hobbes é, muito evidentemente, um soberanista, no sentido de que pressupõe, à semelhança de Rousseau, de quem seria, neste ponto em concreto, um precursor, a indivisibilidade do poder político estatal (Capítulo XVIII). Se para Rousseau a soberania era «vollonté généralle», Hobbes afirmou que «cada súbdito é autor de todos os actos praticados pelo soberano». Por isso, não só a soberania seria infalível, como teria que ser ilimitada (Capítulo XXI). Não é, por conseguinte, errado afirmar-se que Thomas Hobbes é o primeiro iluminista teoricamente consistente.
Por fim, diga-se em abono da verdade e do próprio, que o Estado hobbesiano é um Estado finalista, isto é, encontra-se ao serviço de finalidades que o transcendem. Este aspecto é talvez o único que aproxima Hobbes de qualquer ideia de liberdade. Para ele, o estado de natureza era incompatível com a segurança particular e sem esta os homens não poderiam aspirar a ter direitos e a realizá-los. A ideia é naturalmente discutível, como o foi efectivamente pouco tempo depois por John Locke. O fim primordial e derradeiro do Estado absolutista hobbesiano era a realização individual e o bem comum. Mas estes são sempre os fins últimos invocados por todas as tiranias. E não deverão servir, em conclusão, para justificar todos e quaisquer meios à disposição da soberania.
Diríamos, assim, que Thomas Hobbes é, por excelência, o filósofo do absolutismo. Se Jean Bodin «inventou» a soberania do Estado, Hobbes fundamentou-a, ampliou-a ao ponto de a tornar ilimitada e entregou-a nas mãos livres do príncipe. Mais tarde, Jean-Jacques Rousseau haveria de a fazer definitivamente popular.
Nesta medida, o único ensinamento que o liberalismo poderá retirar da filosofia política de Hobbes é a de que o poder é naturalmente expansivo e tende para a ausência de limites, se estes não lhe forem impostos pelos seus destinatários. Mas, ainda assim, sempre prefiro e considero, neste aspecto em concreto, muito mais útil o pensamento realista de Maquivel, para quem o poder soberano era, ou podia ser, absoluto, se bem que o seu fundamento se devesse procurar simplesmente na vontade, nos interesses e na vaidade pessoal dos seus titulares, para quem o bem comum não se distinguia do seu próprio objectivo de conquistar e manter o poder.
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