Ludwig von Mises publicou no fim da terceira década do século passado, mais concisamente em 1929, um estudo que denominou por «Kritik des Interventionismus» («Crítica do Intervencionismo») no qual defendia a tese de que nos primórdios desse século se começara a desenvolver um forma híbrida de governação, situada entre os dois parâmetros tradicionais, o liberalismo e o socialismo, ao qual deu o nome de «intervencionismo».
Para Mises, o que distinguia esta nova actuação dos governos ocidentais de então e o sistema socialista seria que enquanto este último suprimia a propriedade privada, aquela desejaria mantê-la. Só que, e distintamente do paradigma liberal, o intervencionismo não aceitava nem o princípio incondicional da propriedade privada nem a plena liberdade contratual: pelo contrário, entendia competir ao Estado, por via das políticas governativas e da administração pública, gerir o comportamento dos agentes privados no mercado, condicionando-os no sentido da maximização da sua utilidade e oportunidade.###
A questão suscitar-se-ia, nas suas palavras, do modo seguinte: «existirão apenas duas formas possíveis de organização da sociedade baseada na divisão do trabalho, a propriedade colectiva e a propriedade privada dos meios de produção, ou poderá existir, segundo a tese intervencionista, um terceiro sistema, baseado na propriedade privada e ao mesmo tempo regulado por intervenções estatais»? Concluindo, um pouco mais adiante: «Não há outra opção: ou se renuncia a intervir no livre jogo do mercado, ou se transfere toda a direcção da produção e da distribuição à autoridade governativa. Ou capitalismo ou socialismo. Não há terceira via.» (nossa tradução).
Passados mais de setenta anos sobre a análise e os vaticínios de von Mises, o que dizer da evolução do mundo democrático ocidental e das suas formas de governar as sociedades e os homens que as compõem?
Sem dúvida que o desenvolvimento das actividades e das funções governativas, a sua ampliação e crescimento, levam a crer que, no fim de contas, o intervencionismo se desenvolveu e triunfou enquanto terceira via entre o capitalismo e o socialismo. Para além do mais, ele predomina nos países democráticos ocidentais que proclamam igualmente o primado da iniciativa privada, da livre empresa, da liberdade contratual, em suma, do mercado e da propriedade privada. Aparentemente, Mises estava errado: entre o socialismo e o capitalismo existia um espaço político a ocupar.
Também as formas de intervenção política mudaram substancialmente desde a época em que Mises escreveu este texto e os dias de hoje. Por um lado, naquela altura, os governos orientavam-se mais para a ingerência directa na economia, essencialmente através dos controlos da produção e de políticas de preços condicionados. Hoje, na verdade, o Estado «liberalizou» os preços e não limita a produção, exceptuando alguns sectores económicos (agricultura e pescas, por exemplo) dos Estados integrados na União Europeia. Mas, na generalidade, os agentes económicos são livres de praticar os preços que entenderem e produzir o que bem lhes convém.
Sucede, contudo, que a intervenção estadual e governativa é, actualmente, muito mais ampla e feroz do que no passado, embora possa aparentar o contrário. Desde logo, pela irracionalidade de uma prática de cobrança de elevadas receitas tributárias sobre a produção, justificada durante décadas pela redistribuição de rendimentos e, agora, assumidamente para pagar a despesa pública, isto é, os gastos do próprio Estado. Mas, também, pelo absurdo do excesso da regulamentação: do ambiente à saúde, do comércio à indústria, da educação à habitação, passando pelos galheteiros de azeite e vinagre, até ao design dos maços de cigarros, não existem limites à ingerência do Estado na individualidade humana. Quando, há dias atrás, Vasco Pulido Valente se queixava amargamente da asfixia estatizante dos nossos dias em contraponto à «liberdade» do salazarismo, não estava propriamente a enaltecer os instintos «democráticos» do Doutor António Oliveira Salazar que, de resto, como o próprio confessava, os não tinha. Estava, isso sim, a descrever um tempo em que o intervencionismo estatal não tinha chegado ainda tão longe como hoje efectivamente chegou. Quando se diz que o Estado democrático em que vivemos é geralmente totalitário, isso não encerra qualquer paradoxo ou contradição: não se afirma que ele exerça o poder de forma violenta e ilegítima (no sentido de falta de representatividade sufragada); mas que o faz em todas as dimensões da vida humana, na totalidade da vida social.
Acrescente-se, também, que não deixa de ser falso dizer-se que o Estado não fixa os preços dos produtos, bens e serviços vendidos no mercado pelas empresas privadas. Não o faz, certamente, no seu limite máximo. Mas fá-lo, pelo menos, no valor mínimo abaixo do qual não poderá ser vendido, em virtude das imposições tributárias que têm de ser contabilizadas no preço final. Vejam-se os preços de alguns bens essenciais às nossas estruturas societárias, como os combustíveis, e avalie-se o peso do Estado no preço a que o produto chega ao consumidor.
Tenha-se, por fim, em consideração que num país de forte peso do Estado, como o é Portugal, mas que nem por isso se distingue excessivamente da maior parte das democracias europeias ocidentais, mais de metade do PIB fica cativo no Estado. Isto quer dizer, por outras palavras, que mais de metade da produção privada nacional não é, afinal, privada, mas sim pública.
Sem que nos tenhamos apercebido, em nome da justiça social e de valores de elevado altruísmo comunitário, os nossos Estados têm-se vindo a apropriar do que lhes não pertence. Os governos não produzem nem criam riqueza. Placidamente, arrogam-se no direito de retirar aos cidadãos o pleno direito de organizar e de dispor sobre o ensino, o comércio, o trabalho, o emprego, a saúde, a segurança, o ambiente, a urbanização, e para tudo isto cobram uma renda sem prestarem devidamente os serviços que coercivamente lhes impõem.
Antigamente, não há tanto tempo atrás quanto se possa imaginar, as revoluções e as grandes convulsões políticas davam-se por causa destes excessos e das tentativas de abusos do poder político sobre os cidadãos e a sua legítima propriedade. Hoje, graças ao sistema democrático que permite a alternância pacífica, destituem-se governos e, em sua substituição, elegem-se outros que repetem, ou agravam, o que fizeram os anteriores. Os resultados do intervencionismo estadual são geralmente insatisfatórios. Se o não fossem, as populações estariam satisfeitas com os seus governos, o que não é manifestamente o que acontece no mundo europeu ocidental e, desde logo, na história democrática portuguesa. O grande dilema do nosso século é, portanto, o de saber como desmontar o Estado socialista que o intervencionismo do século vinte criou.
Afinal, Mises tinha razão: o intervencionismo quase extinguiu a propriedade privada nas sociedades onde se tem vindo a espraiar. Nas nossas sociedades. Verdadeiramente, não foi a terceira via que triunfou: vivemos em regimes estruturalmente socialistas onde os limites à propriedade privada são cada vez maiores e, se calhar, nem nos apercebemos disso.
Para Mises, o que distinguia esta nova actuação dos governos ocidentais de então e o sistema socialista seria que enquanto este último suprimia a propriedade privada, aquela desejaria mantê-la. Só que, e distintamente do paradigma liberal, o intervencionismo não aceitava nem o princípio incondicional da propriedade privada nem a plena liberdade contratual: pelo contrário, entendia competir ao Estado, por via das políticas governativas e da administração pública, gerir o comportamento dos agentes privados no mercado, condicionando-os no sentido da maximização da sua utilidade e oportunidade.###
A questão suscitar-se-ia, nas suas palavras, do modo seguinte: «existirão apenas duas formas possíveis de organização da sociedade baseada na divisão do trabalho, a propriedade colectiva e a propriedade privada dos meios de produção, ou poderá existir, segundo a tese intervencionista, um terceiro sistema, baseado na propriedade privada e ao mesmo tempo regulado por intervenções estatais»? Concluindo, um pouco mais adiante: «Não há outra opção: ou se renuncia a intervir no livre jogo do mercado, ou se transfere toda a direcção da produção e da distribuição à autoridade governativa. Ou capitalismo ou socialismo. Não há terceira via.» (nossa tradução).
Passados mais de setenta anos sobre a análise e os vaticínios de von Mises, o que dizer da evolução do mundo democrático ocidental e das suas formas de governar as sociedades e os homens que as compõem?
Sem dúvida que o desenvolvimento das actividades e das funções governativas, a sua ampliação e crescimento, levam a crer que, no fim de contas, o intervencionismo se desenvolveu e triunfou enquanto terceira via entre o capitalismo e o socialismo. Para além do mais, ele predomina nos países democráticos ocidentais que proclamam igualmente o primado da iniciativa privada, da livre empresa, da liberdade contratual, em suma, do mercado e da propriedade privada. Aparentemente, Mises estava errado: entre o socialismo e o capitalismo existia um espaço político a ocupar.
Também as formas de intervenção política mudaram substancialmente desde a época em que Mises escreveu este texto e os dias de hoje. Por um lado, naquela altura, os governos orientavam-se mais para a ingerência directa na economia, essencialmente através dos controlos da produção e de políticas de preços condicionados. Hoje, na verdade, o Estado «liberalizou» os preços e não limita a produção, exceptuando alguns sectores económicos (agricultura e pescas, por exemplo) dos Estados integrados na União Europeia. Mas, na generalidade, os agentes económicos são livres de praticar os preços que entenderem e produzir o que bem lhes convém.
Sucede, contudo, que a intervenção estadual e governativa é, actualmente, muito mais ampla e feroz do que no passado, embora possa aparentar o contrário. Desde logo, pela irracionalidade de uma prática de cobrança de elevadas receitas tributárias sobre a produção, justificada durante décadas pela redistribuição de rendimentos e, agora, assumidamente para pagar a despesa pública, isto é, os gastos do próprio Estado. Mas, também, pelo absurdo do excesso da regulamentação: do ambiente à saúde, do comércio à indústria, da educação à habitação, passando pelos galheteiros de azeite e vinagre, até ao design dos maços de cigarros, não existem limites à ingerência do Estado na individualidade humana. Quando, há dias atrás, Vasco Pulido Valente se queixava amargamente da asfixia estatizante dos nossos dias em contraponto à «liberdade» do salazarismo, não estava propriamente a enaltecer os instintos «democráticos» do Doutor António Oliveira Salazar que, de resto, como o próprio confessava, os não tinha. Estava, isso sim, a descrever um tempo em que o intervencionismo estatal não tinha chegado ainda tão longe como hoje efectivamente chegou. Quando se diz que o Estado democrático em que vivemos é geralmente totalitário, isso não encerra qualquer paradoxo ou contradição: não se afirma que ele exerça o poder de forma violenta e ilegítima (no sentido de falta de representatividade sufragada); mas que o faz em todas as dimensões da vida humana, na totalidade da vida social.
Acrescente-se, também, que não deixa de ser falso dizer-se que o Estado não fixa os preços dos produtos, bens e serviços vendidos no mercado pelas empresas privadas. Não o faz, certamente, no seu limite máximo. Mas fá-lo, pelo menos, no valor mínimo abaixo do qual não poderá ser vendido, em virtude das imposições tributárias que têm de ser contabilizadas no preço final. Vejam-se os preços de alguns bens essenciais às nossas estruturas societárias, como os combustíveis, e avalie-se o peso do Estado no preço a que o produto chega ao consumidor.
Tenha-se, por fim, em consideração que num país de forte peso do Estado, como o é Portugal, mas que nem por isso se distingue excessivamente da maior parte das democracias europeias ocidentais, mais de metade do PIB fica cativo no Estado. Isto quer dizer, por outras palavras, que mais de metade da produção privada nacional não é, afinal, privada, mas sim pública.
Sem que nos tenhamos apercebido, em nome da justiça social e de valores de elevado altruísmo comunitário, os nossos Estados têm-se vindo a apropriar do que lhes não pertence. Os governos não produzem nem criam riqueza. Placidamente, arrogam-se no direito de retirar aos cidadãos o pleno direito de organizar e de dispor sobre o ensino, o comércio, o trabalho, o emprego, a saúde, a segurança, o ambiente, a urbanização, e para tudo isto cobram uma renda sem prestarem devidamente os serviços que coercivamente lhes impõem.
Antigamente, não há tanto tempo atrás quanto se possa imaginar, as revoluções e as grandes convulsões políticas davam-se por causa destes excessos e das tentativas de abusos do poder político sobre os cidadãos e a sua legítima propriedade. Hoje, graças ao sistema democrático que permite a alternância pacífica, destituem-se governos e, em sua substituição, elegem-se outros que repetem, ou agravam, o que fizeram os anteriores. Os resultados do intervencionismo estadual são geralmente insatisfatórios. Se o não fossem, as populações estariam satisfeitas com os seus governos, o que não é manifestamente o que acontece no mundo europeu ocidental e, desde logo, na história democrática portuguesa. O grande dilema do nosso século é, portanto, o de saber como desmontar o Estado socialista que o intervencionismo do século vinte criou.
Afinal, Mises tinha razão: o intervencionismo quase extinguiu a propriedade privada nas sociedades onde se tem vindo a espraiar. Nas nossas sociedades. Verdadeiramente, não foi a terceira via que triunfou: vivemos em regimes estruturalmente socialistas onde os limites à propriedade privada são cada vez maiores e, se calhar, nem nos apercebemos disso.
7 comentários:
Caro Rui perdoa-me se isto lhe cai mal mas discordo total e absolutamente com a sua opinião e lamento que hajam anarquistas paranóicos que se apelidam de Liberais.
Mais uma vez digo que é claro que existe estado demais em tudo que é sítio em Portugal. A divergência surge quando eu não proponho como solução uma anarquia corporativista completamente hediondo e utópico.
Caro Willespie,
Tendo por adquirida a sua afirmação de que proponho «uma anarquia corporativista» hedionda e utópica (o que não me parece o caso e poderia fundamentar), o que propõe então você para fazer diminuir esse Estado que, muito bem, vê «em tudo que é sítio em Portugal»?
O que e' uma «uma anarquia corporativista»?
Rui: Se consideras o meu comentário anterior como errado e precipitado então peço perdão.
O que eu proponho e a hipótese que eu coloco é uma abordagem liberal, centrista, progressivo e moderado como sendo a resposta ideal. Proponho genericamente a reforma e diminuição gradual do estado até a um ponto de existência aceitável de forma que ela potencie os efeitos de uma economia liberalizada para todos ou para um máximo número de pessoas. Não proponho a erradicação do estado.
AAA: Uma anarquia-corporativista é a genericamente, o sonho utópico, neoliberal/libertário. Qualquer coisa semelhante a um "Jennifer Government" ou no melhor dos casos um Estados Unidos menos o congresso e a casa branca.
"Proponho genericamente a reforma e diminuição gradual do estado até a um ponto de existência aceitável de forma que ela potencie os efeitos de uma economia liberalizada para todos ou para um máximo número de pessoas."
A quem cabe definir esse ponto? E como fazê-lo?
"Uma anarquia-corporativista é a genericamente, o sonho utópico, neoliberal/libertário."
1. Se é uma anarquia como pode defender os interesses de corporações?
2. Porquê necessariamente utópica?
A quem cabe definir esse ponto?
Uma resposta de compêndio:
A um governo democráticamente eleito e se só tiver politicamente inclinado para tal ou se recebeu um mandato do povo para efectuar tais reformas.
E como fazê-lo?
Fazendo-o. :P
Se esta pergunta sua for mesmo séria direi que teria de ser com um sentido pragmático qb, gradualmente e com base em modelos de sucesso existentes em quase todo o mundo desenvolvido. Implementando modelos que funcionam e que sejam adequadas ao problema. É claro que isto dava para alargar e especificar até ao ponto de um programa eleitoral de um partido político, mas sinceramente já passa da meia noite. Nem me apetece elaborar um projecto que pode levar meses a completar apenas para publicar aqui neste blog, como tb admito que óbviamente não detenho todos os conhecimentos necessários.
1. Se é uma anarquia como pode defender os interesses de corporações?
Acho que já tinha respondido a esta questão com a referência ao Jennifer Government. E eu que não sou nenhum cyber-punk.
Na ausência total do estado e de um governo representativo do povo, quem detém o poder são as corporações. Deus encarna e reina sobre a terra na forma de Lucro.
2. Porquê necessariamente utópica?
A não ser que estejamos a falar de coisas diferentes, tal e qual como o Marxismo, o modelo clássico libertário, nunca conseguirá sair do papel e para a prática na sua íntegra. O que não impede óbviamente que sejam retiradas algumas ideias interessantes e postas mesmo em prática com excelentes resultados. Agora o liberalismo clássico teve a sua era e foram justamente as suas falhas que gerarem sub-produtos que são hoje padrões de qualquer estado democrático. O estado-providência que a direita-liberal tanto odeia apesar das suas variadíssimas formas de implementação minimalista e eficiente.
Dentro de alguns dias vou publicar no meu blog um comentário crítico em relação à direita libertária em Portugal. Continuo a lamentar que se confunda Liberalismo moderno com a direita libertária.
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