Marcello Caetano chegou ao vértice do poder em 1968, no final de um imenso período de poder solitário e autocrático de António de Oliveira Salazar.
Durante quase dois anos governou sob a sombra tutelar do malogrado Presidente do Conselho de Ministros, que, irrecuperavelmente diminuído e condenado a uma morte próxima e inevitável, mantinha-se na ilusão de ainda governar o país e mantinha essa mesma ilusão a quem queria e julgava continuar a legitimar-se no poder pela sua autoridade.
Ao fim de menos seis anos de governo e menos de quatro sem Salazar, Marcello caiu. Não deixou, com excepção de alguns poucos amigos, boas recordações políticas a ninguém. À esquerda acusam-no de ser um continuador simulado do salazarismo, à direita imputam-lhe a perda da herança recebida. A ala liberal abandona-o em 71, desiludida com a falta de audácia e de uma reforma constitucional profunda. Os seus «amigos», admiradores e discípulos, que eram às centenas, viram-lhe as costas. No 25 de Abril, da extrema-esquerda à extrema-direita, Marcello era o principal responsável pela ditadura e pela revolução. Pela guerra colonial e pela descolonização. Pela DGS e pela falta de autoridade.
De um momento para o outro, a História deixou de lhe prestar atenção. Verdadeiramente, até hoje, raramente o observou com rigor e imparcialidade. Existem, na verdade, o Marcello Caetano jurista, de quem se fala com parcimónia e algum respeito, o jovem Marcello da segunda geração do Integralismo Lusitano que sucedeu à morte de Sardinha, o Marcello Caetano eterno colaborador e concorrente de Salazar. Mas, o homem que presidiu ao Conselho de Ministros entre a queda de Salazar e o 25 de Abril parece nunca ter existido.
E, contudo, essa época e a sua personagem foram, talvez, os mais fascinantes da nossa vida contemporânea.
O século XX português viveu de similitudes e paralelismos com o mundo de então. Afonso Costa e a República reproduziram o espírito jacobino e anti-clerical próprio das democracias parlamentares republicanas do tempo, Sidónio foi um estereótipo das reacções militaristas e revolucionárias a esses regimes, Salazar só surpreendeu pelo tempo que se manteve no poder, enquanto que a democracia revolucionariamente imposta limitou-se a chegar um pouco mais tarde do que sucedera no resto da Europa.
Marcello, pelo contrário, não tem referência que se lhe equivalha, nem é fácil encontrar-lhe um émulo que com ele rivalize. Foi um homem com uma dimensão trágica desde praticamente o começo da sua vida adulta, o que lhe transparecia no rosto, na pose, no olhar. Inteligente, tinha a noção de que a herança que recebera não era sua nem podia ser de ninguém. Um poder pessoal absoluto, mantido durante décadas, é por definição intransmissível e insustentável. Culto, não ignorava que os ventos da história não podiam manter o país e a sociedade que nele vivia sem profundas modificações. Sensato, cedo compreendeu que já não mandava, ou melhor, que nunca mandara verdadeiramente. Ambicioso, não foi capaz de resistir à chama do poder onde haveria de se consumir. A época em que governou, como todos os grandes momentos de grandes transformações, de encruzilhada e de impotência dos homens para com os factos da história que julgam, mas não podem, dominar, foi trágica, vibrante, agitada, em suma, dramática. E o que torna a História intensa não são tanto os grandes acontecimentos, ou as convulsões arrebatadoras, mas a percepção de fatalidade que alguns dos seus protagonistas têm. Uma das mais impressionantes marcas da inteligência, e Marcello tinha-a indiscutivelmente, é a clara noção das impossibilidades e a obrigação de persistir.
Antes, durante e depois de Marcello Caetano, todos tinham, à esquerda e à direita, soluções para Portugal e para o Ultramar que o Professor de Direito não conseguiu descobrir ou, se as descobriu, não conseguiu concretizar. Ninguém as aplicou com êxito nem antes de ele governar, nem durante, nem depois dele abandonar o poder. Salazar perdera a Índia em Dezembro de 61 e, com ela, o Cardeal Cerejeira julgava condenada a «alma portuguesa». Mas foi a Marcello Caetano e aos breves anos que governou, que se imputou o fim do Império. Quem estava antes e quem veio depois, como, também, quem não esteve ou esteve mal durante o seu consulado, não tem culpas no cartório, nem é responsável pela tragédia que se abateu sobre os povos africanos de quem Portugal se dizia responsável.
Marcello Caetano tem sido o tampão que separa Portugal e os que o governaram no século passado, das suas responsabilidades. É o nosso «lavar de consciências», que de certa forma permitiu que o País e a sociedade rapidamente se recompusessem malgré tout.
É, talvez, chegada a hora de se começar a olhar para Marcello com outros olhos e a investigar desapaixonadamente o seu tempo e o seu modo.
Vd., também, Os Filhos do Viúvo.
Durante quase dois anos governou sob a sombra tutelar do malogrado Presidente do Conselho de Ministros, que, irrecuperavelmente diminuído e condenado a uma morte próxima e inevitável, mantinha-se na ilusão de ainda governar o país e mantinha essa mesma ilusão a quem queria e julgava continuar a legitimar-se no poder pela sua autoridade.
Ao fim de menos seis anos de governo e menos de quatro sem Salazar, Marcello caiu. Não deixou, com excepção de alguns poucos amigos, boas recordações políticas a ninguém. À esquerda acusam-no de ser um continuador simulado do salazarismo, à direita imputam-lhe a perda da herança recebida. A ala liberal abandona-o em 71, desiludida com a falta de audácia e de uma reforma constitucional profunda. Os seus «amigos», admiradores e discípulos, que eram às centenas, viram-lhe as costas. No 25 de Abril, da extrema-esquerda à extrema-direita, Marcello era o principal responsável pela ditadura e pela revolução. Pela guerra colonial e pela descolonização. Pela DGS e pela falta de autoridade.
De um momento para o outro, a História deixou de lhe prestar atenção. Verdadeiramente, até hoje, raramente o observou com rigor e imparcialidade. Existem, na verdade, o Marcello Caetano jurista, de quem se fala com parcimónia e algum respeito, o jovem Marcello da segunda geração do Integralismo Lusitano que sucedeu à morte de Sardinha, o Marcello Caetano eterno colaborador e concorrente de Salazar. Mas, o homem que presidiu ao Conselho de Ministros entre a queda de Salazar e o 25 de Abril parece nunca ter existido.
E, contudo, essa época e a sua personagem foram, talvez, os mais fascinantes da nossa vida contemporânea.
O século XX português viveu de similitudes e paralelismos com o mundo de então. Afonso Costa e a República reproduziram o espírito jacobino e anti-clerical próprio das democracias parlamentares republicanas do tempo, Sidónio foi um estereótipo das reacções militaristas e revolucionárias a esses regimes, Salazar só surpreendeu pelo tempo que se manteve no poder, enquanto que a democracia revolucionariamente imposta limitou-se a chegar um pouco mais tarde do que sucedera no resto da Europa.
Marcello, pelo contrário, não tem referência que se lhe equivalha, nem é fácil encontrar-lhe um émulo que com ele rivalize. Foi um homem com uma dimensão trágica desde praticamente o começo da sua vida adulta, o que lhe transparecia no rosto, na pose, no olhar. Inteligente, tinha a noção de que a herança que recebera não era sua nem podia ser de ninguém. Um poder pessoal absoluto, mantido durante décadas, é por definição intransmissível e insustentável. Culto, não ignorava que os ventos da história não podiam manter o país e a sociedade que nele vivia sem profundas modificações. Sensato, cedo compreendeu que já não mandava, ou melhor, que nunca mandara verdadeiramente. Ambicioso, não foi capaz de resistir à chama do poder onde haveria de se consumir. A época em que governou, como todos os grandes momentos de grandes transformações, de encruzilhada e de impotência dos homens para com os factos da história que julgam, mas não podem, dominar, foi trágica, vibrante, agitada, em suma, dramática. E o que torna a História intensa não são tanto os grandes acontecimentos, ou as convulsões arrebatadoras, mas a percepção de fatalidade que alguns dos seus protagonistas têm. Uma das mais impressionantes marcas da inteligência, e Marcello tinha-a indiscutivelmente, é a clara noção das impossibilidades e a obrigação de persistir.
Antes, durante e depois de Marcello Caetano, todos tinham, à esquerda e à direita, soluções para Portugal e para o Ultramar que o Professor de Direito não conseguiu descobrir ou, se as descobriu, não conseguiu concretizar. Ninguém as aplicou com êxito nem antes de ele governar, nem durante, nem depois dele abandonar o poder. Salazar perdera a Índia em Dezembro de 61 e, com ela, o Cardeal Cerejeira julgava condenada a «alma portuguesa». Mas foi a Marcello Caetano e aos breves anos que governou, que se imputou o fim do Império. Quem estava antes e quem veio depois, como, também, quem não esteve ou esteve mal durante o seu consulado, não tem culpas no cartório, nem é responsável pela tragédia que se abateu sobre os povos africanos de quem Portugal se dizia responsável.
Marcello Caetano tem sido o tampão que separa Portugal e os que o governaram no século passado, das suas responsabilidades. É o nosso «lavar de consciências», que de certa forma permitiu que o País e a sociedade rapidamente se recompusessem malgré tout.
É, talvez, chegada a hora de se começar a olhar para Marcello com outros olhos e a investigar desapaixonadamente o seu tempo e o seu modo.
Vd., também, Os Filhos do Viúvo.
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