A democracia e o sufrágio universal são dois instrumentos de regulação do sistema político e da vida social que nem sempre são devidamente apreciados pelos liberais. Frequentemente, tende-se para reduzir o valor de um e de outro, dizendo-se, do primeiro, que é um método imperfeito de promover alterações não violentas no aparelho de poder dos Estados, e, do segundo, que se trata de um mero critério de escolha dos governantes, que pode desvirtuar a qualidade dos mesmos em virtude da desigualdade individual do colégio eleitoral, da falta de formação e de informação, logo, de capacidade para fazer escolhas racionais. Hayek, que nesta matéria esteve longe de ser dos mais cépticos, chegou mesmo a propor outras formas de selecção dos governantes que não passavam pelo sufrágio universal em eleições cíclicas, e pronunciou-se frequentemente contra os excessos dos poderes democráticos. Uma coisa é, porém, defender que todo o poder soberano deverá ser limitado por valores estruturantes que são verdadeiramente metapolíticos e que a soberania não se pode considerar ilimitada por ser sufragada democraticamente, e outra bem distinta será invalidar os méritos do sufrágio universal, em razão dos excessos cometidos pelos actuais regimes democráticos.
É certo que a interpretação actual da soberania na generalidade dos países democráticos é de recorte rousseauniano, segundo o qual ela é una, indivisível e ilimitada, transferindo-se apenas por motivos de operacionalidade para um grupo limitado de governantes, que devem dispor dela como se fossem o conjunto dos cidadãos. Aqui reside o vício do totalitarismo democrático actual, que permite a invasão da quase totalidade da vida social, por se ter «esquecido» dos valores tradicionais do liberalismo e do constitucionalismo oitocentista, verdadeiros limites ao exercício do poder público. Contudo, o problema não reside no método de escolha dos governantes, mas na ausência de freios constitucionais ao exercício das funções de governo que sejam efectivamente respeitados, bem como na interpretação feita ao abrigo das ideologias das funções que este deve desempenhar. A igualdade dos cidadãos perante a lei, seja para elegerem, seja para serem eleitos, o ius sufragii e o ius honorum que já os romanos do período republicano clássico reconheciam a todos quantos tivessem a sua cidadania, é um valor político fundamental e não apenas um método de escolha entre muitos outros possíveis. O sufrágio universal é, assim, um princípio civilizacional partilhado por países que, a Ocidente e a Oriente, o souberam conquistar e deve considerar-se, também, património da tradição liberal, ainda que lhe não caiba por inteiro.
Da democracia não se poderá dizer coisa muito distinta. Mas vale a pena acrescentar que ela extravasa largamente os meros procedimentos de contabilização de votos ou de designação dos titulares da soberania; da existência de partidos políticos ou de expressão livre. Nela se incluem um conjunto de valores que são, eles também, de civilização, uma vez mais, repita-se, detectáveis a Ocidente e a Oriente. O respeito pelo indivíduo como sujeito de direitos fundamentais e inalienáveis é, provavelmente, a síntese desse conjunto de pressupostos, ainda que eles possam ser interpretados de formas várias, conforme as sensibilidades políticas. Mas, seja-se mais ou menos liberal, socialista, democrata-cristão, ou de outra família democrática, há sempre um mínimo ético comum que nos une e que, face ao despostismo, cava uma abissal diferença.
Nestes acontecimentos recentes que têm vindo ao de cima nalguns países islâmicos, esta distinção é bem evidente e reforça o valor da democracia, do sufrágio universal e da defesa dos valores da liberdade e da tolerância, e deverá mesmo delimitar a fronteira entre o que um espírito liberal deve considerar tolerável e intolerável. Nessa medida, o «conflito» em curso pode ser efectivamente considerado como um conflito de civilizações. Mas não entre o Ocidente e o Oriente, o Bem e o Mal, o judaico-cristianismo e o islamismo. Mas entre a cultura da liberdade e a condição de escravidão.
É certo que a interpretação actual da soberania na generalidade dos países democráticos é de recorte rousseauniano, segundo o qual ela é una, indivisível e ilimitada, transferindo-se apenas por motivos de operacionalidade para um grupo limitado de governantes, que devem dispor dela como se fossem o conjunto dos cidadãos. Aqui reside o vício do totalitarismo democrático actual, que permite a invasão da quase totalidade da vida social, por se ter «esquecido» dos valores tradicionais do liberalismo e do constitucionalismo oitocentista, verdadeiros limites ao exercício do poder público. Contudo, o problema não reside no método de escolha dos governantes, mas na ausência de freios constitucionais ao exercício das funções de governo que sejam efectivamente respeitados, bem como na interpretação feita ao abrigo das ideologias das funções que este deve desempenhar. A igualdade dos cidadãos perante a lei, seja para elegerem, seja para serem eleitos, o ius sufragii e o ius honorum que já os romanos do período republicano clássico reconheciam a todos quantos tivessem a sua cidadania, é um valor político fundamental e não apenas um método de escolha entre muitos outros possíveis. O sufrágio universal é, assim, um princípio civilizacional partilhado por países que, a Ocidente e a Oriente, o souberam conquistar e deve considerar-se, também, património da tradição liberal, ainda que lhe não caiba por inteiro.
Da democracia não se poderá dizer coisa muito distinta. Mas vale a pena acrescentar que ela extravasa largamente os meros procedimentos de contabilização de votos ou de designação dos titulares da soberania; da existência de partidos políticos ou de expressão livre. Nela se incluem um conjunto de valores que são, eles também, de civilização, uma vez mais, repita-se, detectáveis a Ocidente e a Oriente. O respeito pelo indivíduo como sujeito de direitos fundamentais e inalienáveis é, provavelmente, a síntese desse conjunto de pressupostos, ainda que eles possam ser interpretados de formas várias, conforme as sensibilidades políticas. Mas, seja-se mais ou menos liberal, socialista, democrata-cristão, ou de outra família democrática, há sempre um mínimo ético comum que nos une e que, face ao despostismo, cava uma abissal diferença.
Nestes acontecimentos recentes que têm vindo ao de cima nalguns países islâmicos, esta distinção é bem evidente e reforça o valor da democracia, do sufrágio universal e da defesa dos valores da liberdade e da tolerância, e deverá mesmo delimitar a fronteira entre o que um espírito liberal deve considerar tolerável e intolerável. Nessa medida, o «conflito» em curso pode ser efectivamente considerado como um conflito de civilizações. Mas não entre o Ocidente e o Oriente, o Bem e o Mal, o judaico-cristianismo e o islamismo. Mas entre a cultura da liberdade e a condição de escravidão.
1 comentário:
BRAVO!!!
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