12 janeiro 2006

constituição e segurança normativa

Parece que o governo holandês terá anunciado a decisão de não voltar a referendar o já decrépito Tratado Constitucional Europeu. Logo se ouviu um coro entusiástico de aplausos pelo, ao que se julga, enterro definitivo do cadáver putrefacto em que aquele luxuriante documento se transformou. Eu recomendaria, porém, alguma cautela e outra tanta dose de prudência nos festejos. E tentarei explicar porquê.

Prescindindo das razões de fundo que levaram o Estado, repito, o Estado holandês a tomar aquela atitude (e nisto, para os liberais, o Estado é sempre como o mordomo das novelas da Agatha Christie...), irei directamente aos aspectos estritamente comunitários. E propunha um desafio: alguém sabe explicar, com precisão e rigor, como são tomadas as decisões do Conselho de Ministros da União Europeia (incluindo aqui, sobretudo, o seu pilar comunitário da Comunidade Europeia)? Chamo a atenção para o facto de que as decisões comunitárias daquela instituição prevalecerem sobre o direito interno dos Estados-membro, e serem susceptíveis de aplicação e efeito directo. Isto significa, por outras palavras, que essas decisões nos são directamente destinadas e surtem efeitos práticos e concretos nas nossas vidas. Saber, por conseguinte, como são tomadas, é o mínimo que se pode admitir a quem é delas destinatário.

Quem ande um pouco pela ramagem do problema, afirmará de imediato que não há qualquer inconveniente, porque tudo se manterá como dantes. Se um pouco mais «apertado», o inquirido responderá, caso seja «versado» nas problemáticas comunitárias, que se aplicam as regras do Tratado de Nice. Bastaria, assim, abri-lo e ler as disposições aplicáveis às deliberações do Conselho.

Temo bem, contudo, que as coisas não sejam exactamente assim. E, por conseguinte, a quem quiser deslindar o enigma, repito, das formas de deliberação comunitária sobre matérias que se nos aplicam directamente, recomendaria a leitura dos documentos que enunciarei em seguida. Se, findo esse ciclópico trabalho, tiverem percebido alguma coisa, ficaria sinceramente admirado. Assim, os documentos de leitura obrigatória são estes:
- Tratado de Nice;
- Protocolo de Nice, anexo ao Tratado da União Europeia e aos Tratados que instituem as Comunidades Europeias, relativo ao alargamento da União Europeia;
- Declaração nº 20 de Nice, respeitante ao alargamento da União Europeia;
- Tratado de adesão da República Checa, da Estónia, de Chipre, da Letónia, da Lituânia, da Hungria, da Polónia, da Eslovénia e da Eslováquia, nomeadamente as disposições relativas ao Conselho;
- Tratado de adesão da Roménia e da Bulgária;
- Protocolo relativo às condições e regras de admissão da República da Bulgária e da Roménia à União Europeia;
- Acto relativo às condições de adesão da República da Bulgária e da Roménia e às disposições dos tratados em que se funda a União Europeia (que se aplica em substituição do anterior, caso o Tratado Constitucional não entre em vigor até 1 de Janeiro de 2007).

Isto significa que o problema actual da integração comunitária poderá colocar-se em relação a ela mesma, mas nunca quanto a eventuais instrumentos que clarifiquem o seu funcionamento. Podemos discutir se o caminho seguido é bom ou mau, conveniente ou inconveniente, e até concluir que nada disto nos interessa. Aí, teríamos, nós e qualquer Estado-membro que se queira desvincular da União, uma dificuldade acrescida: não existem normas nos tratados que expliquem como isso se faz, as célebres regras de secessão, bem como as responsabilidades que caberiam às partes. Por sinal, o Tratado Constitucional incluía-as pela primeira vez na História das Comunidades. Como clarificava o procedimento decisional que, note-se, está em vigor. Como estabelecia, com clareza, quais eram as competências que cabiam à União e aos Estados. Neste último aspecto, como as normas ou não existem nos tratados, ou as que existem são muito genéricas, essa matéria cabe à soberania dos Estados-membros (sobretudo aos maiores) e, em parte, à jurisprudência comunitária. Pode ser, por conseguinte, como tem aliás sido, objecto de atropelos provocados por decisões unilaterais dos Estados-membros, insusceptíveis de qualquer controlo democrático ou constitucional, à luz do célebre princípio da necessidade da extensão das competências comunitárias, plasmado no actual artigo 308º do Tratado da Comunidade Europeia.

Em conclusão, esta é a Europa comunitária em que vivemos. O Tratado Constitucional simplificava as coisas e torná-las-ia inteligíveis. Poderá não ser muito agradável o que lá se lê. Mas, o que lá se lê é o que já existe, sem que a maior parte das pessoas tenha a consciência disso. O que quer dizer que não será pelo facto de nos oferecem um espelho que ficamos mais ou menos feios, embora a possibilidade de nos reconhecermos tal qual somos, seja sempre uma vantagem para quem não queira andar enganado.

8 comentários:

Migas (miguel araújo) disse...

Excelente post
Esta europa caminha a passos largos para trás e para sucessivos 'pontos zero'. E alguém há-de pagar a 'factura'.

Pedro Sá disse...

Exactamente, Rui. O tratado constitucional não traz nada de novo, no essencial...

RS disse...

Viva Rui,
Talvez quando o Reino Unido deixar a UE se clarifiquem as tais condições de secessão.
Está mais para isso que outra coisa...
(Por vontade do nosso MNE já estavam de fora há muito tempo).
Quanto ao tratado constitucional, as coisas não ~são muito diferentes do que se passa a nível nacional. Quantos portugueses conhecem a Constituição e as suas implicações na forma de governar e legislar?
É preciso ler muito...
Nesse aspecto, os EUA dão-nos 10-0, mas têm o "over simplifying", que é uma boa treta...

É bom ver-te activo!
Um abraço,
RS

rui a. disse...

Olá, caro Rui,

Tenho-te seguido n' A Sombra e agradeço-te imenso as referências que lá me fizeste e ao meu PC.
Vamos lá continuar com isto, que mais não seja para passar o tempo.
Um abraço amigo,

João Melo Alvim disse...

Plano B precisa-se. Sim, porque ficar a patinar em círculos, à espera que alguém nos venha buscar não é muito lógico.

Anónimo disse...

Meu caro Rui,
Excelente a lucidez do texto. Comme d'habitude! Abraço. JPD

www.joaopedrodias.blogspot.com

PMF disse...

Caro RS,

quando é que o Reino Unido provocou uma "crise" no processo de integração?

Apesar da posição crítica, os tribunais ingleses são dos melhores a aplicar o Direito Comunitário. Apesar de tudo, em termos históricos, nunca õ Reino Unido inviabilizou (ou provocou crises) na União.

O mesmo já não se dirá da França...

Anónimo disse...

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