12 dezembro 2005

por um parlamentarismo português


1. Nunca existiu na Europa democrática e constitucional qualquer vestígio de presidencialismo. O máximo denominador comum entre este sistema, exclusivo, durante muito tempo, dos Estados Unidos da América, foi o semipresidencialismo francês instituído por de Gaulle na fundação da V República, operada pelo seu regresso ao poder, pela Constituição de 1958 e pela reforma plebiscitária de 1962. Esta última acentuou os poderes presidenciais e a legitimidade do Chefe de Estado, que passou a ser eleito por sufrágio universal directo, por maioria absoluta em duas voltas.

2. O sistema semipresidencialista português criado pela Constituição de 1976, ainda hoje em vigor, não representa qualquer tradição democrática de governo nacional, antes foi uma forma de, ao tempo, se conseguir um «pacto de regime» entre o poder militar (dominante) e o poder civil de expressão partidária: a Chefia de Estado militar tutelaria o governo dos partidos.

3. Apesar das revisões do texto original, principalmente a primeira de 1982, a nossa Constituição mantém em vigor o sistema semipresidencialista, mesmo que levemente atenuado face ao originário protagonismo presidencial. Mas, ainda na demissão do governo de Santana Lopes (e abstraiamo-nos dos protagonistas em causa), se confirmou que, em Portugal, o Presidente da República tem poderes políticos efectivos, e que a legitimidade do governo assenta simultaneamente na sua vontade e na da Assembleia da República. Esta dupla dependência governamental é o traço fundamental do semipresidencialismo.

4. Qualquer reforma do sistema de governo português só poderá seguir no sentido do esvaziamento dos poderes presidenciais e no reforço da componente parlamentar. Essa é a tradição europeia, foi sempre a portuguesa enquanto tivemos regimes democráticos e constitucionais, e não se vê porque motivo se haveria de caminhar em sentido inverso a este, à nossa tradição e à do Continente em que estamos inseridos. Por conseguinte, o parlamentarismo deverá ser o horizonte de qualquer reforma séria do sistema de governo português.

5. Na sua História da Inglaterra, George Macaulay Trevelyan escreveu: «na era Stuart os ingleses desenvolveram para si próprios, sem participação ou exemplo estrangeiro, um sistema de governo parlamentar, administração local, liberdade de expressão e liberdade pessoal, exactamente oposto às tendências que prevaleciam no continente, em rápida marcha para o absolutismo régio, burocracia centralizada e sujeição do indivíduo ao Estado. Enquanto os Estados Gerais de França e as Cortes de Aragão e Castela cessavam de exercer até as suas funções medievais, enquanto a vida política na Germânia se atrofiava no mosaico de insignificantes principados que constituíam o Império, a Câmara dos Comuns, sob a chefia dos squires e em aliança com os mercadores e com os juristas do Direito Comum, transformou-se a si própria no órgão governativo de uma nação moderna.»

6. A Inglaterra preparou, durante séculos, um sistema político que girasse em torno do Parlamento. Talvez o único revés sentido nesse ciclo evolutivo tenha sido a dissolução da câmara representativa, em 1653, durante a ditadura de Cromwell, o puritano revolucionário que, avesso ao absolutismo, se proclamou Lord Protector do Reino e dissolveu todas as suas instituições tradicionais de governo… A restauração dos Stuart, em 1660, com Carlos II, a Revolução Gloriosa de 1688, o Bill of Rights do ano seguinte e, sobretudo, a curiosa sucessão à coroa inglesa dos dois eleitores de Hannover, George I e II, que mal percebiam e falavam o inglês, vindo-se obrigados a socorrerem-se dos membros do Parlamento para o governo do Reino, encerraram definitivamente esse ciclo de parlamentarização do regime.

7. O parlamentarismo inglês poderá classificar-se como o referencial clássico do modelo, no qual o poder político assenta em dois pólos: o Parlamento e o Primeiro-Ministro, que podem reciprocamente provocar a dissolução ou a destituição das instituições políticas em causa. Por essa razão, o parlamentarismo britânico é também designado por «dualista».

8. Não é, por conseguinte, o único tipo deste sistema. Outro, que assenta exclusivamente no poder da Assembleia representativa, o parlamentarismo «monista», foi o que vigorou na maior parte da I República Portuguesa, na III e IV Repúblicas Francesa e na generalidade das democracias europeias continentais até à eclosão da II Guerra Mundial. Aqui, o governo depende exclusivamente da Assembleia e não tem qualquer contra-poder para se defender dos excessos da câmara. O resultado foi, como é sabido, o descrédito da instituição parlamentar, permanentemente a derrubar governos e a provocar crises políticas, dos partidos políticos e da própria democracia. Há quem diga, sem estar muito longe da verdade, que os fascismos europeus tiveram aqui a sua origem.

9. No fim da II Guerra Mundial, a Alemanha, dividida, destroçada, envergonhada e humilhada, quis dar ao mundo um exemplo de sobriedade política e seriedade governativa. E deu-o, sem dúvida, por via da sua Constituição (da RFA) de 1949, onde instituiu um novo tipo de sistema parlamentar: o parlamentarismo racionalizado. Entre outros aspectos, o que realça desta variante é a responsabilidade do Parlamento (o Bundestag) na queda do Governo em funções por sua iniciativa. Pelo artigo 67º (moção de censura construtiva) o Parlamento só pode destituir o Governo se, antes disso, tiver encontrado uma nova maioria no seu seio que sustente um novo Governo. Razão pela qual, a estabilidade governativa na Alemanha tem sido uma regra constante.

10. Em Portugal, o parlamentarismo clássico não colhe. Qualquer hipótese para nos aproximarmos do modelo inglês exigiria reformas profundas do sistema eleitoral e, em consequência, do sistema partidário, que a nossa classe política se recusa a promover. O parlamentarismo de assembleia, ou monista, carece de uma Chefia de Estado com autoridade, mas sem legitimidade, democrática, isto é, de um Rei. A única República onde subsiste com sucesso (não político, mas de desenvolvimento nacional) é em Itália. Mas, trata-se de um caso muito particular e até cómico, a merecer até uma análise própria. Não serve, porém, como resulta evidente, para Portugal.

11. Mas nada impediria que, numa futura revisão, a perda do poder presidencial de dissolução do Parlamento fosse compensada por uma nova clausula constitucional que transcrevesse o espírito (e até a letra…) do citado artigo 67º. Com estas duas modificações, verdadeiramente uma em função da outra, daríamos por findo o semipresidencialismo de Abril de 1975 e, talvez, começássemos um novo ciclo político-constitucional.

9 comentários:

Rui Martins disse...

É impossível colocar melhor a questão... Bem apresentado e melhor documentado... Contudo, não responde à grande questão:

Vale a pena manter um cargo que foi quase completamente esvaziado das suas funções? Manter um cargo (o mais alto da Nação) para fins de mera "representação" não corresponde a uma forma "monárquica" de encarar o presidencialismo? Ou seja, o actual PR não é uma espécie de rei eleito, na boa tradição visigótica ou sueva?

Anónimo disse...

Seria muito pedir que, numa próxima posta, se analisasse as razões impeditivas de uma aproximação do sistema português ao modelo de parlamentarismo inglês? Mais do que enumerar as razões (culturais, históricas, circunstanciais, etc.), o interessante seria dissecar os «porquês» dessas mesmas razões serem tão impossíveis de ultrapassar. Os círculos uninominais não seriam um primeiro passo?

Anónimo disse...

Obrigado aos dois pelas referências e sugestões.
Prometo abordá-las brevemente.

Carlos Loureiro disse...

Caro Rui,

Deixou o Decreto sidonista n.º 3997, de 1918, nas entrelinhas.

rui a. disse...

Caro Carlos,

Foi sol de pouca dura: revogado pela Lei de 1 de Março de 1919.

Anónimo disse...

Essa de rejeitar o presidencialismo com base apenas em estarmos inseridos na Europa e de o presidencialismo ser uma tradição americana, não colhe. Isso não é um argumento racional.

A objeção óbvia ao sistema inglês é que o primeiro-ministro tem poderes, mas não é eleito. O primeiro-ministro britânico é apenas o líder do partido mais votado. Não é eleito independentemente da assembleia. Logo, não tem legitimidade democrática. O presidente americano, pelo contrário, tem poder E tem legitimidade democrática. Logo, o sistema presidencialista americano é superior, pois é mais democrático.

Anónimo disse...

Excelente análise, embora considere que a "questão" nacional não assente nem se resolva através da perspectiva parlamentarismo/versus semi-presidencialismo/versus presidencialismo.
Penso que a questão não está mais no formato...mas sim no conteúdo objectivo do regime.

Anónimo disse...

FOI QUASE BOM. SOH FALTOU VOCE CONSIDERAR O IMPERIALISMO SOCIAL EM PORTUGAL.

Anónimo disse...

mTo bOuM eSsI pOsT mIgUxU. sOh nAuM sEi oQ eH iMpErIaLiSmU sOcIaU qUe o mIgUxU aNoNiMo pOsToU