Juan de Mariana (1536-1624), padre jesuíta espanhol, foi um percursor do liberalismo clássico e, até mesmo, do pensamento «libertarian» norte-americano.
Contemporâneo de Luís de Molina e de Francisco Suárez, os dois padres jesuítas mais conhecidos da Segunda Escolástica, ou Escolástica Tardia, estudou em Alcalá, Roma e na Sicília e ensinou teologia, aos trinta e três anos de idade, na Universidade de Paris. Foi, porém, muito mais longe do que aqueles seus dois contemporâneos na defesa do individualismo e da liberdade. Escreveu, ao longo dos seus oitenta e oito anos de vida, quatro obras fundamentais: Historiæ de rebus Hispaniæ (1592); De rege et regis institutione (1598); De ponderibus et mensuris (1599); De monetae mutatione (1605). A sua contribuição para o pensamento liberal terá sido mais evidente nas três últimas obras, sendo que a primeira dessas foi escrita a pedido do «seu» rei, Filipe II de Espanha e I de Portugal. Mas, como nota Rothbard (no Austrian Perspective on the History of Economics Thought) com alguma ironia, apesar da «encomenda», o poder régio não se saiu muito bem da análise feita nesse livro.
Na verdade, Mariana foi, para a época, um revolucionário. Por várias e boas razões. Entre elas, o facto de se não ter limitado a seguir a doutrina assente pela Escolástica de Salamanca do tiranícidio, isto é, o direito natural de um povo tiranizado pelo seu monarca poder depô-lo, tendo-a ultrapassado e aprofundado os seus fundamentos. Desde logo, Mariana considerava a propriedade privada como um direito absoluto, insusceptível de ser posto em causa, por via directa ou indirecta, pelo poder político, ou seja, pelos monarcas. No caso dos meios indirectos de ataque à propriedade privada encontrava os «impostos opressivos» e a inflação provocada pelo governo, nomeadamente pelo aumento da moeda em circulação e a sua consequente desvalorização para sustentar o despesismo público. Mariana considera que qualquer um destes casos remete o poder régio para a tirania e, em consequência, legitima o tiranicídio, isto é, o afastamento violento do rei pelo povo, inclusivamente condenando-o à pena capital.
Por outro lado, enquanto que os autores escolásticos pressupunham que o tiranicídio resultasse de uma inequívoca declaração da vontade do povo, Mariana considera que este pode ser um acto individual sem consentimento público e, ainda assim, resultar legítimo. Aconselhava, porém, que se tentasse, primeiro, obter esse consentimento e, caso ele não fosse possível dada a tirania régia eventualmente não permitir a livre expressão, ao menos o conselho de alguns homens experientes e imparciais. Contudo, como se acaba de ver, o tiranicídio não carecia decididamente de legitimação democrática e popular, na doutrina deste padre jesuíta.
É, também, em Juan de Mariana que encontramos os fundamentos, mais tarde repetidos por Locke, da origem pactícia da sociedade política: a defesa da propriedade privada e dos direitos individuais. Como, igualmente, a legitimidade popular do poder político, o que permitiria a sua natural recuperação pelos governados, no caso de falta de cumprimento contratual dos governantes. Estes, em especial o Rei, deviam obediência ao princípio da igualdade perante a lei moral e a lei do Estado. Caso as desrespeitassem, transformar-se-iam em tiranos, sendo legítima a sua deposição violenta.
A aplicação do seu pensamento liberal à economia política consta, como já foi referido, principalmente Monetae Mutatione. Esta obra haveria, de resto, de o levar ao cárcere em Setembro de 1603, com 73 anos de idade, por determinação de Filipe III. Julgado pela Inquisição, não cedeu em nenhuma das suas afirmações e assumiu tudo o que escrevera. O seu prestígio leva à interferência directa do Papa no julgamento, tendo sido libertado quatro meses mais tarde, sem condenação.
O que escreveu, então, nessa obra Juan de Mariana, que provocou a ira do seu soberano e a perseguição das autoridades? Em primeiro lugar, que o Rei, nenhum Rei, é proprietário dos seus súbditos e dos seus patrimónios. Em consequência, a criação e aplicação de tributos só poderá ser feita com o consentimento destes últimos, já que se trata sempre de uma apropriação de parte da propriedade privada dos visados. Não admite, também, a «quebra da moeda» por decisão régia, isto é, a diminuição do valor metálico das moedas, pela sua fundição e nova emissão com menos peso, ou, eventualmente, menos quantidade dos metais mais nobres, no caso das moedas compostas (no seu tempo, em Espanha, esta prática era frequente na chamada «monedas de vellón», compostas de prata e de cobre. Até ao século XVI este tipo de moeda foi sempre estável. A partir daí, começaram a ser refundidas e a prata desapareceu quase por completo, ficando as moedas a ser de cobre). Daqui resultaria a inflação, sobre a qual o padre escreveria: «Solo un insensato intentaria separar estos valores de modo que el precio legal difiriera del natural. Estúpido, qué digo, malvado el gobernante que ordena que algo que la gente valora, digamos, en cinco se venda por diez». Para evitar a inflação e a tentação régia de «quebrar a moeda» para equilibrar as contas públicas, Mariana recomenda contenção nas despesas do Rei e da Corte (o que, como se imagina, enfureceu toda a gente…), assim como evitar guerras desnecessárias ou manter possessões territoriais distantes e sem utilidade.
Juan de Mariana foi um liberal e um percursor dos clássicos e é, também, entre outros, um excelente exemplo para contrariar os fanatismos obscurantistas que pretendem reduzir a instituição que é a Igreja Católica, a sua História e os homens que a fizeram, nas perseguições da Inquisição.
Sobre Juan Mariana, consultar:
Instituto Juan se Mariana
Juan de Mariana: The Influence of the Spanish Scholastics, pelo Prof. Doutour Jesus Huerta de Soto
Contemporâneo de Luís de Molina e de Francisco Suárez, os dois padres jesuítas mais conhecidos da Segunda Escolástica, ou Escolástica Tardia, estudou em Alcalá, Roma e na Sicília e ensinou teologia, aos trinta e três anos de idade, na Universidade de Paris. Foi, porém, muito mais longe do que aqueles seus dois contemporâneos na defesa do individualismo e da liberdade. Escreveu, ao longo dos seus oitenta e oito anos de vida, quatro obras fundamentais: Historiæ de rebus Hispaniæ (1592); De rege et regis institutione (1598); De ponderibus et mensuris (1599); De monetae mutatione (1605). A sua contribuição para o pensamento liberal terá sido mais evidente nas três últimas obras, sendo que a primeira dessas foi escrita a pedido do «seu» rei, Filipe II de Espanha e I de Portugal. Mas, como nota Rothbard (no Austrian Perspective on the History of Economics Thought) com alguma ironia, apesar da «encomenda», o poder régio não se saiu muito bem da análise feita nesse livro.
Na verdade, Mariana foi, para a época, um revolucionário. Por várias e boas razões. Entre elas, o facto de se não ter limitado a seguir a doutrina assente pela Escolástica de Salamanca do tiranícidio, isto é, o direito natural de um povo tiranizado pelo seu monarca poder depô-lo, tendo-a ultrapassado e aprofundado os seus fundamentos. Desde logo, Mariana considerava a propriedade privada como um direito absoluto, insusceptível de ser posto em causa, por via directa ou indirecta, pelo poder político, ou seja, pelos monarcas. No caso dos meios indirectos de ataque à propriedade privada encontrava os «impostos opressivos» e a inflação provocada pelo governo, nomeadamente pelo aumento da moeda em circulação e a sua consequente desvalorização para sustentar o despesismo público. Mariana considera que qualquer um destes casos remete o poder régio para a tirania e, em consequência, legitima o tiranicídio, isto é, o afastamento violento do rei pelo povo, inclusivamente condenando-o à pena capital.
Por outro lado, enquanto que os autores escolásticos pressupunham que o tiranicídio resultasse de uma inequívoca declaração da vontade do povo, Mariana considera que este pode ser um acto individual sem consentimento público e, ainda assim, resultar legítimo. Aconselhava, porém, que se tentasse, primeiro, obter esse consentimento e, caso ele não fosse possível dada a tirania régia eventualmente não permitir a livre expressão, ao menos o conselho de alguns homens experientes e imparciais. Contudo, como se acaba de ver, o tiranicídio não carecia decididamente de legitimação democrática e popular, na doutrina deste padre jesuíta.
É, também, em Juan de Mariana que encontramos os fundamentos, mais tarde repetidos por Locke, da origem pactícia da sociedade política: a defesa da propriedade privada e dos direitos individuais. Como, igualmente, a legitimidade popular do poder político, o que permitiria a sua natural recuperação pelos governados, no caso de falta de cumprimento contratual dos governantes. Estes, em especial o Rei, deviam obediência ao princípio da igualdade perante a lei moral e a lei do Estado. Caso as desrespeitassem, transformar-se-iam em tiranos, sendo legítima a sua deposição violenta.
A aplicação do seu pensamento liberal à economia política consta, como já foi referido, principalmente Monetae Mutatione. Esta obra haveria, de resto, de o levar ao cárcere em Setembro de 1603, com 73 anos de idade, por determinação de Filipe III. Julgado pela Inquisição, não cedeu em nenhuma das suas afirmações e assumiu tudo o que escrevera. O seu prestígio leva à interferência directa do Papa no julgamento, tendo sido libertado quatro meses mais tarde, sem condenação.
O que escreveu, então, nessa obra Juan de Mariana, que provocou a ira do seu soberano e a perseguição das autoridades? Em primeiro lugar, que o Rei, nenhum Rei, é proprietário dos seus súbditos e dos seus patrimónios. Em consequência, a criação e aplicação de tributos só poderá ser feita com o consentimento destes últimos, já que se trata sempre de uma apropriação de parte da propriedade privada dos visados. Não admite, também, a «quebra da moeda» por decisão régia, isto é, a diminuição do valor metálico das moedas, pela sua fundição e nova emissão com menos peso, ou, eventualmente, menos quantidade dos metais mais nobres, no caso das moedas compostas (no seu tempo, em Espanha, esta prática era frequente na chamada «monedas de vellón», compostas de prata e de cobre. Até ao século XVI este tipo de moeda foi sempre estável. A partir daí, começaram a ser refundidas e a prata desapareceu quase por completo, ficando as moedas a ser de cobre). Daqui resultaria a inflação, sobre a qual o padre escreveria: «Solo un insensato intentaria separar estos valores de modo que el precio legal difiriera del natural. Estúpido, qué digo, malvado el gobernante que ordena que algo que la gente valora, digamos, en cinco se venda por diez». Para evitar a inflação e a tentação régia de «quebrar a moeda» para equilibrar as contas públicas, Mariana recomenda contenção nas despesas do Rei e da Corte (o que, como se imagina, enfureceu toda a gente…), assim como evitar guerras desnecessárias ou manter possessões territoriais distantes e sem utilidade.
Juan de Mariana foi um liberal e um percursor dos clássicos e é, também, entre outros, um excelente exemplo para contrariar os fanatismos obscurantistas que pretendem reduzir a instituição que é a Igreja Católica, a sua História e os homens que a fizeram, nas perseguições da Inquisição.
Sobre Juan Mariana, consultar:
Instituto Juan se Mariana
Juan de Mariana: The Influence of the Spanish Scholastics, pelo Prof. Doutour Jesus Huerta de Soto
7 comentários:
Sempre a aprender. Thanks.
Um homem não faz uma instituição, nem é uma instituição.
Até nos regimes mais opressores houve defensores da liberdade.
um feliz 2006, rui
beijocas
Ó meu amigo! Com todo o respeito, colocar o P. Mariana a par de Grandes como Soto, Molina, Vitoria ou Suarez parece-me um pouco excessivo. Já na época era dado por tonto e há muito que os analistas da Lenda Negra em Espanha ou os puros investigadores da história da chamada "Escola Espanhola do Direito das Gentes" o colocaram no lugar... O problema é que os "bem-pensantes" americanos o redescobriram para zurzir nos Espanhóis aquando das comemorações colombinas.
Para o mesmo efeito, agarrem-se ao Molina e já têm pano para mangas dentro dos limites da decência e da lucidez.
excelente ideia, este post.
como diz o gabriel acima, estamos sempre a aprender.
há no entanto neste artigo uma articulação de raciocinios perturbante sobretudo quando nos tentamos colocar numa perspectiva "liberal" e democrática.
Segundo Mariana a propriedade privada é um direito absoluto e o não respeito desse direito justifica a definição de determinado regime politico como uma "tirania".
Uma forma de resolver o problema é o "tiranicidio" que pode ser legitimo ainda que resulte de uma decisão individual ( por exemplo de alguém que sinta limitado o seu direito absoluto).
Talvez isto ajude a explicar a duplicidade de alguns quanto às questões da violência contemporânea: qualquer acto de violência, se não for em defesa de um "bem absoluto" como a propriedade privada, é liminarmente classificado como "terrorismo" e rejeitado em absoluto. Mas os actos violentos de grupos políticos ou dos detentores do poder em defesa da propriedade privada como foi o caso de muitos episódios da história da américa latina nas ultimas décadas?
rui.david@gmail.com
ah e esqueci-me de dizer no final do comentário anterior.
um bom 2006 com bons posts como este.
rui.david@gmail.com
Estamos na mesma... Essa do tiranicídio não foi o Mariana que inventou...
Perigosa essa agora de andar a pegar nos neo-escolásticos para escorar o lindo resultado das nossas coxas construções positivistas...
Enviar um comentário