EBULIÇÃO NEGRA
Hoje vesti-me de negro, T-shirt, calças e sapatilhas negras. Queria sentir na pele o mistério da roupa preta, que sentimentos provoca no próprio e evoca nos outros.
De início não me sentia muito à vontade, um pouco consciente da indumentária. Pensariam que gozava com a maralha? Ou que não fazia parte do clube? Na verdade, foi a primeira vez que me vesti inteiramente de negro; mesmo nos funerais limito-me à tradicional gravata preta, com casaco azul-escuro e camisa branca. O uniforme negro fica bem para os gatos-pingados que, na Europa e por enquanto, ainda se sentem obrigados a alguma reserva.
Notei logo que para os não-negros eu era invisível. Foi uma surpresa porque eu costumo reparar nos de negro, deve ser tara hereditária... Pelo contrário, os de negro aquiesciam o meu “uniforme” com rápidos esgares e até sinais impercetíveis de aceitação.
Ninguém me pediu autógrafos nem para tirar fotografias, anotei apenas que, de negro, era agora mais um invisível visível para uma comunidade selecta de tribalistas.
As raparigas da tribo, quando me viam afastavam o olhar rapidamente. O sexto sentido feminino devia dar-lhes a entender que a minha intenção não era genuína. Faltavam-me as tatuagens estrambólicas, a argola no nariz e os brincos; o corte de cabelo também retumbava a falso.
Algumas sexagenárias de negro demoravam mais o olhar, mas acabavam por se distanciar. Não era o “toyboy” que procurariam, pensei eu.
Resolvi sentar-me numa esplanada a tomar um fino, ‹‹o Sol batia-me forte na cabeça e sentia-me apanhado.›› Será por estar de negro?
Fui perguntar ao ChatGPT – o moderno génio da lâmpada – se o negro poderia esquentar mais do que as roupas claras. A resposta foi afirmativa, a temperatura na superfície da roupa preta é 10 a 20º C mais elevada do que na roupa branca.
Porra, estou num micro-ondas a cozer em lume brando. Na verdade, vestir de negro “confirma”, para a tribo, a fé no aquecimento global antropogénico. Ou como diz o nosso secretário-geral da ONU:
— Isto já não é aquecimento, é EBULIÇÃO GLOBAL!
Se eu andasse todos os dias de preto ainda acabava a grudar as mãos no asfalto da pista do Sá Carneiro ou a atirar sopa ao tríptico do Hieronymus Bosch.
Só quem não se veste de negro é que não compreende a urgência de lutar contra a ebulição global. Não há Planeta B e, enquanto as pessoas não se compenetrarem, o negro é o símbolo do nosso funesto destino.
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