31 dezembro 2022

Um Papa impopular




O Papa Bento XVI, que hoje faleceu, nunca foi um Papa popular, e ele sabia disso. A adversidade que sentia de uma boa parte do mundo, incluindo e principalmente do mundo católico, pode ter contribuído para a sua resignação em 2013.

Na realidade, ele considerava que, nos tempos que correm, era uma virtude ser impopular. Ele preferia uma Igreja pequena e forte a uma Igreja grande e fraca. Ele não tinha grande consideração por tudo aquilo que fosse popular, incluindo o voto popular, lembrando frequentemente que Cristo fora condenado à morte por um voto genuinamente democrático, de mão no ar e por maioria esmagadora (cf. aqui).

Uma das razões da sua impopularidade derivava do facto de ele não ser socialista e, menos ainda, um socialista na versão extrema do marxismo. Nascido e crescido na Alemanha, pôde observar no seu país durante mais de 40 anos o capitalismo e o socialismo lado a lado, o primeiro na parte Ocidental e o segundo na parte Oriental. Debaixo dos seus olhos, enquanto uma parte da Alemanha prosperava, a outra decaía.

Dois anos depois de o socialismo entrar em colapso, para celebrar o centésimo aniversário da Encíclica Rerum Novarum (1891), o Papa João Paulo II publicou a Encíclica Centesimus Annus (1991), quase de certeza redigida pelo então cardeal Joseph Ratzinger. Perante a realidade, a Igreja proclamou então aquilo que estava diante dos olhos de todos, que era a superioridade do capitalismo sobre o socialismo.

Mas isso não o tornou mais popular num mundo que, a despeito da evidência, continuava rendido aos prazeres do socialismo. Ao mesmo tempo, ele combatia as corrente socialistas da teologia dentro da Igreja, como a chamada teologia da libertação. Esta corrente da teologia, nascida na Alemanha mas muito popular na América Latina, fomentava a luta de classes, uma mensagem que era obviamente anti-cristã porque Cristo proclamou o amor entre os homens, não a luta entre eles.

Foi a desordem doutrinal em que o catolicismo vivia depois do Concílio Vaticano II que levou Joseph Ratzinger, ainda sob o papado de João Paulo II, a empreender a obra da sua vida, de que foi coordenador - o Catecismo da Igreja Católica (1993).  Não se publicava um Catecismo há quase 500 anos a definir exactamente o que era e o que não era doutrina católica. A partir desta publicação, aquilo que era catolicismo e aquilo que não era catolicismo, ficava perfeitamente definido. Acabava-se aquela espécie de bordel doutrinal em que o catolicismo tinha vivido até então.

O Catecismo também continha os princípios de organização social defendidos pela Igreja e esses não são nada socialistas. Em particular, a concepção do Estado defendida no Catecismo  é radicalmente oposta à concepção socialista do Estado.

O Catecismo defende a ideia do Estado subsidiário segundo a qual o Estado só deve ser chamado a intervir quando a iniciativa privada e espontânea dos cidadãos não conseguir resolver os problemas pessoais e sociais que lhes aparecem pela frente. Por outras palavras, o Estado é a última solução, a solução de última instância depois de todas as outras terem falhado ou se mostrarem inoperantes. E as outras são o indivíduo, a família, a empresa, a igreja, a corporação, a associação, enfim, todas as formas de organização voluntária entre as pessoas.

Mas aquilo que, talvez, mais irritasse os intelectuais descendentes dos filósofos modernos e, em especial do seu compatriota Immanuel Kant, foi a defesa que o Papa Bento XVI sempre fez de que a fé é profundamente racional - um tema ao qual dedicou uma boa parte da sua vida intelectual. 

Kant proclamava que  não se podia chegar a Deus pela razão. Ratzinger contrapunha que se podia chegar a Deus pela razão e a fé era precisamente o último passo racional nesse caminho. Kant e os intelectuais modernos que dele descenderam operavam com uma "razão amputada", dizia Ratzinger. Ora, quem argumenta com uma razão amputada, uma razão de onde Deus está excluído, não pode nunca chegar a bom porto.

Já existiram  265 Papas na Igreja Católica desde a sua fundação, e eu não conheço a obra de todos eles, nem nada que se pareça. Mas posso dizer com toda a convicção que faleceu hoje o meu Papa preferido.

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