16 novembro 2022

Um juiz do Supremo (94)

 (Continuação daqui)



94. A dúvida legítima


É talvez o maior erro judicial da democracia, e foi o caso que abriu a série da SIC com o título "Condenados" (2010).

Dois militares da GNR são assassinados numa noite de 1994  nos arredores de Bragança. O carro de serviço em que seguiam é abandonado a alguma distância do local, com o lado esquerdo encostado a um penhasco, sugerindo que o condutor terá saído pela porta do lado direito.

Três meses depois, um exame às impressões digitais revela que uma impressão palmar de um colega, Sérgio Casca, existe no espelho retrovisor interior do lado do pendura. Segundo a técnica que a analisou, a impressão palmar é bem nítida revelando indícios de que a mão estava transpirada.

Os militares da GNR tinham sido abatidos com tiros na nuca, cinco num caso, dois no outro.

Durante mais de três anos a investigação fica parada. Até que no verão de 1998, no curto espaço de dois meses, tudo se precipita. O cabo Sérgio Casca é acusado, julgado e condenado pelo homicídio dos colegas no tribunal de Bragança.

Parece existir uma certa pressa na condenação porque a leitura da sentença tem lugar a 6 de agosto, já bem dentro das férias judiciais.

O cabo Sérgio Casca é condenado a 20 anos de prisão efectiva que vai cumprir no presídio militar de Santarém. Nunca lhe foi atribuído um móbil para o crime.

O colectivo de juízes que condenou Sérgio Casca inclui o juiz Francisco Marcolino, então com 43 anos de idade. O juiz Marcolino salienta-se durante o julgamento quando, numa sessão, se levanta e pede a Sérgio Casca para lhe mostrar as palmas das mãos.

A sentença viria a revelar aquilo que o juiz Marcolino observou e as consequências que daí tirou, a saber, que as mãos de Sérgio Casca estavam secas, mesmo em pleno verão e num tribunal apinhado de gente - que parecia uma "sauna" - e que isso era revelador de uma personalidade fria e calculista, própria de um assassino cruel.

Depois de vários pedidos para reabertura do processo junto do Supremo Tribunal de Justiça, que nunca foram atendidos, Sérgio Casca é libertado em 2008 após dez anos e meio de cadeia, e continua até hoje a reclamar a sua inocência, comportando-se como um cidadão exemplar.

Por essa altura, o juiz Marcolino, tendo ameaçado um irmão com uma arma de fogo, justifica, perante os jornalistas, o uso da arma e do coldre à cintura porque "um criminoso" que ele tinha condenado anos antes iria sair da prisão e dizia que "queria matar o juiz".

O falatório popular local sempre referiu o tráfico de droga como o móbil mais provável do crime. Ao próprio Sérgio Casca, entrevistado por um jornal de Bragança, também lhe parece a hipótese mais razoável.

Na altura do julgamento (1998), havia algumas peças de informação que, ou ainda não eram conhecidas, ou pareciam não ter importância nenhuma. As seguintes:

a) O juiz Marcolino, desde 1989, através da mulher, era sócio de um empresário da construção, chamado Duarte Rodrigues, também conhecido por Duarte "Lagarelhos", numa imobiliária em Bragança (Imobiliária de São Bartolomeu).

b) Em 2000, a mulher do juiz vendeu a quota ao sócio a título gratuito, indiciando um certo desejo de se ver livre dela a qualquer preço.

c) O juiz Marcolino começa a ser referido em processos judiciais em Portugal e nos EUA por traficantes de droga (ecstasy) que dizem que Duarte "Lagarelhos" lhes dizia que tinha a protecção de um juiz de Bragança (às vezes referido por Mercolino ou Marcelino em Portugal, Marehlino nos EUA). O Correio da Manhã faz manchete: "Magistrado acusado de proteger tráfico".

d) Em 2003 Duarte Lagarelhos é preso e julgado no ano seguinte por tráfico de droga. Apanha nove anos de prisão por ser o principal financiador de uma rede ("bando", na linguagem da sentença) de tráfico de ecstasy para os EUA.

e) Ainda não eram conhecidas publicamente algumas das características de personalidade do juiz Marcolino que se viriam a revelar com todo o vigor nos anos seguintes, entre elas

- a de não ter qualquer prurido em utilizar o sistema de justiça para fins pessoais que são espúrios à ideia de justiça, como o enriquecimento pessoal, a vingança, a ameaça, a perseguição pessoal, o favor político, a extorsão ou a coação;

- a de ser um mentiroso consumado;

- a sua irresistível atracção pelo dinheiro fácil, expressa na profusão de processos judiciais que põe contra outras pessoas e nos respectivos pedidos de indemnização, que chegam a ser milionários.

Na reportagem da SIC feita no Programa "Condenados", a estação recupera algumas imagens do julgamento de 1998 em Bragança.  Dos três juízes, o único que é focado individualmente pelas câmaras é o juiz Marcolino. Provavelmente, os jornalistas quiseram passar aos telespectadores a dúvida legítima que eles próprios tinham no espírito, mas que nunca tiveram a coragem de  formular explicitamente.  

-Terá o juiz Marcolino forçado a condenação do cabo Sérgio Casca para encobrir o(s) seu(s) amigos(s) traficante(s)?

Quer dizer, nós podemos ter hoje a juiz do Supremo um juiz que, em co-autoria, cometeu de forma deliberada o maior erro judicial da nossa história democrática, condenando um inocente a uma longa pena de prisão, para não incomodar os seus amigos traficantes de droga. 

Esta dúvida legítima, se não existissem outras razões, deveria ter sido motivo suficiente para nunca lhe permitirem chegar ao mais alto tribunal judicial do país.

Mas a maioria absoluta do PS... (o juiz Marcolino foi candidato do PS à Câmara de Bragança em 2005).


(Continua acolá)

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