21 janeiro 2022

A corrupção sistémica da justiça

Eu tinha o seguinte texto preparado para enviar à comunicação social, desde há um mês, para o caso do Presidente Rui Moreira ser condenado no caso Selminho. Apesar de ele ter sido absolvido (cf. aqui), julgo que, no essencial, o texto mantém a sua pertinência acerca da corrupção sistémica do nosso serviço público de justiça, tanto mais que o Ministério Público já anunciou que vai recorrer da sentença (mesmo sem ter tido a oportunidade de a analisar na íntegra).

 

Rui Moreira e a justiça

O Presidente Rui Moreira foi hoje condenado pelo Tribunal de S. João Novo  a...  pelos crimes de... no âmbito de um processo judicial conhecido por "Caso Selminho".

Não é meu propósito discutir a sentença, tanto mais que esta é uma decisão de primeira instância que ainda está sujeita a recurso. Aquilo que me faz escrever este texto, na qualidade de cidadão do Porto, é uma questão  diferente. É dizer que deposito infinitamente mais confiança na integridade pessoal do Presidente Rui Moreira do que na integridade do sistema de justiça que hoje o condenou.

Desde 1976 que o PS e o PSD se alternam na governação do país. São eles que, ao longo dos últimos 46 anos, ocasionalmente apoiados em pequenos partidos, constituem aquilo que se convencionou chamar "o sistema".

Foram o PS e o PSD que, ao longo de todos estes anos, repartiram entre si o poder nas instituições do Estado e nas principais autarquias do país. Uma rara excepção é a cidade do Porto onde um movimento independente, liderado pelo Presidente Rui Moreira, os tem mantido afastados do poder durante três mandatos consecutivos.

Foram também o PS e o PSD que, ao longo das quase cinco décadas de regime democrático, construíram o actual sistema de justiça, que eu gostaria de caracterizar brevemente.

No topo do edifício judicial português está o Tribunal Constitucional, que é um tribunal político, e não um tribunal de justiça. Foi sob a  liderança do PS e do PSD que o tribunal supremo do país deixou de ser o Supremo Tribunal de Justiça para passar a ser o Tribunal Constitucional (TC), herdeiro do Conselho da Revolução.

Todos os 13 juízes do Tribunal Constitucional são nomeados por acordo entre o PS e o PSD que são os dois únicos partidos que fazem maioria qualificada na Assembleia da República. Sete dos 13 juízes do Tribunal Constitucional não são juízes nenhuns, mas meros mandatários políticos do PS e do PSD que ascendem ao mais alto tribunal do país e à categoria mais alta da magistratura - a categoria de juiz conselheiro - sem nunca terem feito um único julgamento na vida.

O Tribunal Constitucional corrompe um dos princípios básicos de uma justiça democrática, que é o princípio da independência do poder judicial em relação ao poder político. Esta cultura de politização da justiça, e da sua partidarização pelo PS e pelo PSD, que começa no Tribunal Constitucional, desce por todo o edifício judicial do país e afecta todas as instituições da justiça.

O Ministério Público em todos os países de tradição democrática é um órgão político, sujeito à tutela do ministro da Justiça. Mesmo no regime do Estado Novo que, como se sabe, não nutria qualquer simpatia pela democracia liberal, o Ministério Público era um órgão do poder político. Ora, na democracia portuguesa instituída pelo PS e pelo PSD, o Ministério Público é um órgão do poder judicial, com uma magistratura paralela à dos juízes. Os procuradores do Ministério Público são ao mesmo tempo acusadores e juízes.

Creio que é uma situação inédita numa democracia, um órgão político ser dotado de poder judicial, mas tem a sua razão de ser porque permite ao Ministério Público fazer política dando a impressão de que está a fazer justiça. O Ministério Público é, assim, o batoteiro por excelência do jogo democrático. Todos julgam que ele está a fazer justiça quando aquilo que ele faz, porque é isso que está na sua natureza, é, na realidade, política.

O Ministério Público é o acusador oficial do país, detendo o monopólio da acusação criminal, um dos mais danosos monopólios do Estado. Perante uma queixa, são os magistrados do MP que julgam se a queixa é ou não procedente, se a queixa corresponde ou não a um crime. Nesta função de juízes, os magistrados do MP podem acusar inocentes e recusar-se a acusar criminosos. E podem fazer tudo isto num regime de impunidade completo pois não respondem pelos crimes que cometem, o mais frequente dos quais é o crime de calúnia, que consiste em acusar um inocente.

Na sua qualidade de magistrados, os procuradores do MP - que são meros acusadores - confundem-se com os verdadeiros juízes. Nos tribunais, o procurador do Ministério Público senta-se na tribuna à direita do juiz - a tal ponto que o povo julga estar perante dois juízes -, enquanto a defesa se senta num plano inferior; entra na sala juntamente com o juiz e recebe as mesmas honras do juiz; nos intervalos, sai para tomar café com o juiz e cochicha com o juiz. Em muitos casos, o próprio juiz vem da carreira do Ministério Público, onde foi colega do acusador.

Esta promiscuidade entre acusador e juiz representa a renovação, em plena democracia e pela mão do PS e do PSD, de uma das mais antidemocráticas e odiosas instituições da história da civilização ocidental - a Inquisição. O Ministério Público é a versão moderna da Inquisição em que o acusador e o juiz se confundem na mesma instituição.

Na fase de instrução, o juiz-de-instrução é mesmo colega de trabalho dos procuradores do Ministério Público e ele próprio um acusador, pois é ele que valida as diligências processuais (v.g., escutas telefónicas) e decreta as medidas de coacção propostas pelo Ministério Público. Que juiz é este que é ao mesmo tempo acusador? É o juiz do Tribunal do Santo Ofício que o PS e o PSD recriaram em Portugal em pleno século XXI.

Este sistema de justiça em que os acusadores se confundem com os juízes e em que há juízes que são ao mesmo tempo acusadores é um plano inclinado contra o arguido. Acuse-se uma pessoa e com elevada probabilidade ela será condenada, mesmo que esteja inocente. E, na realidade, era esse o propósito da Inquisição - condenar a qualquer preço aqueles que pusessem em causa a ordem estabelecida - "o sistema" -, mesmo aqueles, e sobretudo aqueles, que eram inocentes de qualquer crime de verdade.

A Inquisição foi criada para defender o poder absoluto e centralizado das monarquias ibéricas quando, a partir do século XVI, os ventos da liberdade e da democracia começaram a soprar do norte da Europa. É essa a função do Ministério Público hoje. Proteger o poder absoluto e centralizado da aliança implícita entre o PS e o PSD que governa o país há quase meio século. Na defesa de um Estado centralizado, os principais alvos da moderna Inquisição são, evidentemente, os autarcas.

A razão é que os autarcas são a expressão viva e democrática da descentralização do poder  absoluto que a Inquisição foi criada para combater, um combate que é hoje prosseguido pelo Ministério Público em nome do PS e do PSD. É impressionante a quantidade de autarcas eleitos democraticamente e acusados pelo Ministério Público pelos mais variados crimes, e a quantidade deles que são absolvidos, mesmo num sistema de justiça que é um verdadeiro plano inclinado contra os arguidos.

Ainda recentemente, os mesmos magistrados do Ministério Público que produziram a acusação contra o Presidente Rui Moreira, foram os acusadores num processo judicial onde também estavam  envolvidos autarcas. Os autarcas foram absolvidos. O juiz-presidente do colectivo  mostrou-se "perplexo" com a falta de provas da acusação e acusou os procuradores de "desonestidade intelectual".

No passado mês de Abril faleceu um dos mais prestigiados autarcas do país, António Almeida Henriques, presidente da Câmara de Viseu. Morreu na condição de arguido, sob suspeita por parte do Ministério Público de ter praticado crimes de prevaricação no exercício das suas funções.   Numa das suas últimas intervenções públicas falou sobre a política de "tiro ao alvo" que o Ministério Público pratica rotineiramente sobre os autarcas do país. Morreu sem que tenha tido a oportunidade de limpar o seu nome.

Finalmente, uma palavra sobre o Conselho Superior da Magistratura. O Conselho Superior da Magistratura é o órgão que promove os juízes. É composto por 13 membros, dos quais seis são juízes, e sete são meros mandatários políticos designados pelo PS e pelo PSD. Um juiz que queira promover-se na carreira, aumentará as suas probabilidades de promoção se decidir de maneira que agrade ao PS, ao PSD ou a ambos.

Ora, condenar o Presidente Rui Moreira é uma decisão que agrada a ambos, porque foi ao PS e ao PSD que o Presidente Rui Moreira tirou a governação da segunda maior cidade do país vai já fazer uma década.

E não surpreende sequer que a pena pedida pelo Ministério Público seja precisamente a perda do mandato do Presidente Rui Moreira, a fim de que o PS e o PSD e o seu cortejo de acólitos possam de novo submeter ao seu mando aquela que é a cidade com maior tradição de independência do país e de que o Presidente Rui Moreira é, neste momento, o principal protagonista - a cidade do Porto.

Ao sistema de justiça português faltam os dois atributos principais de um sistema de justiça democrático - a independência (em relação ao poder político) e a imparcialidade (que dê à defesa as mesmas prerrogativas que concede à acusação). Em termos democráticos, não é sistema de justiça nenhum, é um sistema persecutório que tanto serve para perseguir criminosos como para perseguir pessoas de bem.

Ocorre ao espírito a célebre profecia de Santo Agostinho, relembrada pelo Papa Bento XVI na Encíclica "Deus é Amor" (2005). Disse Santo Agostinho : "Um Estado que não se reja pela justiça converte-se num grande bando de ladrões".

O Estado português, controlado pelo PS e pelo PSD, pode estar a atingir este estádio, pretendendo tirar ao Presidente Rui Moreira, por portas e travessas, aquilo que o povo do Porto democraticamente lhe deu e que legitimamente lhe pertence - a presidência da Câmara Municipal da sua cidade.

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