Um eurodeputado embebeda-se e decide vir para a rua exibir a sua bebedeira em público.
Como é uma figura pública, é reconhecido e filmado (cf. aqui).
Depois, queixa-se de que lhe violaram o direito à vida privada (cf. aqui).
Se este assunto algum dia chegasse ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), que é o Tribunal que, em última instância, decide sobre esta matéria, a quem é que o Tribunal daria razão, ao eurodeputado ou ao autor do vídeo?
Estão aqui em confronto dois direitos previstos na Convenção Europeia do Direitos do Homem (CEDH) - o direito à imagem que é parte do direito à vida privada previsto no artº 8º da CEDH e o direito à liberdade de transmitir informações que é parte do direito à liberdade de expressão previsto no artº 10º (cf. aqui).
O eurodeputado iria argumentar que foi filmado sem a sua autorização, violando o seu direito à imagem e, portanto, à vida privada. O autor do vídeo argumentaria com a sua liberdade de transmitir ao público informação relevante sobre o eurodeputado nos amplos limites da liberdade de expressão que se aplicam a um político.
O TEDH possui uma extensa jurisprudência sobre ambos os artigos (cf. aqui e aqui) e também sobre o conflito entre eles, mas o caso presente é um verdadeiro caso-de-escola. O TEDH daria prontamente razão ao autor do vídeo fazendo prevalecer a liberdade de informação sobre o direito à imagem.
"Ninguém pode ser filmado sem a sua autorização" é uma regra geral e abstracta que vale para a generalidade dos cidadãos mas não para as figuras públicas que estão constantemente a ser filmadas e fotografadas sem qualquer autorização. Na realidade, é isso mesmo que faz delas figuras públicas.
Além disso, o eurodeputado não estava em espaço privado, mas na rua, que é espaço público. Em nenhum momento o vídeo mostra algum pormenor que possa constituir informação privada sobre a vida do deputado (v.g., a porta por onde saiu para a rua ou a porta por onde vai entrar para se recolher).
Quanto à embriaguez, ela não é um assunto privado. Foi o próprio eurodeputado que, trazendo-a para a rua, decidiu torná-la pública.
Filmar e fotografar figuras públicas em espaços públicos é algo que se faz milhões de vezes por dia por esse mundo fora, sejam artistas de cinema, políticos ou futebolistas. Por que é que o eurodeputado havia de ser excepção? Pelo contrário, o facto de ser eurodeputado coloca sobre ele obrigações adicionais que tornam o seu direito à proteção da imagem mais restrito do que para um cidadão comum.
Nos confrontos de direitos em que intervém o artº 10º (direito à liberdade de expressão) o TEDH, em defesa da democracia, possui uma tradição de dar um peso esmagador a este direito em detrimento dos outros e o âmbito deste direito é fortemente ampliado quando do outro lado está um político (cf. aqui).
Existe um óbvio interesse público, e de defesa da democracia, em saber como é que um representante do povo se comporta, sobretudo quando ele exibe em público comportamentos que comprometem seriamente o seu julgamento, como é notoriamente o caso da embriaguez. Algumas das perguntas de relevante interesse público são as seguintes.
-Os cidadãos que aquele eurodeputado representa revêem-se naquele comportamento que ele exibe em público?
-A embriaguez que ele exibe em público é ocasional ou é recorrente?
-Uma vez que o seu julgamento estava afectado pelo álcool (ou alguma outra droga), esteve ele nessa noite em contacto com alguém a quem possa ter fornecido informações sigilosas sobre assuntos de Estado?
-O dia seguinte era dia de trabalho no Parlamento Europeu? E, em caso afirmativo, ele compareceu ao trabalho? E que trabalho realizou, que leis foram discutidas ou votadas nesse dia?
O acórdão do TEDH seria arrasador para o eurodeputado. E uma vergonha para o país que o elegeu.
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