17 novembro 2020

Um juiz à solta (XV)

 (Continuação daqui)



XV. Como se apanha um juiz corrupto?

Desde 2015, com a entrada em vigor do novo Código do Processo Civil, que os juízes no Brasil estão vinculados a seguir a jurisprudência emanada dos tribunais superiores nos casos que apreciam (cf. aqui).

O Brasil herdou de Portugal a tradição judicial própria de um Estado autocrático e inquisitorial em que os juízes estavam ao serviço do poder político que era um poder discricionário. Por isso, quer o Brasil quer Portugal, têm tido notórias dificuldades em transformar a sua cultura judicial medieval e autoritária numa cultura judicial moderna e democrática.

E a verdade é que, ainda que o Brasil seja visto em alguns sectores da sua vida social como um país do terceiro mundo - o mais notório é, obviamente, a extensa pobreza que o aflige - existem outros sectores onde ele parece estar bem à frente do seu antigo colonizador.

A vinculação dos juízes à jurisprudência é um dos atributos principais, senão mesmo o atributo principal de um  sistema de justiça democrático. E se os cidadãos brasileiros já se podem orgulhar desse progresso, o mesmo não podem dizer os portugueses. Uma proposta de lei do Bloco de Esquerda em 2019 que visava vincular os juízes portugueses à jurisprudência dos tribunais superiores foi chumbada no Parlamento (cf. aqui).

Os juízes portugueses continuam em rédea solta e se a democracia é um regime de regras que cabe aos juízes fazer cumprir a todos os cidadãos, os juízes em Portugal não são exemplo para ninguém porque, eles próprios, não estão sujeitos a quaisquer regras na sua acção de julgar. O preço a pagar é a corrupção da justiça.

No centro da chamada Operação Lex, o mais recente grande escândalo da justiça portuguesa, está aquele episódio em que o Correio da Manhã (CM) noticiou que o juiz Rui Rangel ia responder em tribunal por um "calote" a uma clínica de estética. O juiz considerou a palavra "calote" ofensiva e pôs uma acção por difamação ao CM pedindo 250 mil euros de indemnização. 

O juiz Rangel perdeu na primeira instância, cujo juiz, seguindo a jurisprudência do TEDH que é a jurisprudência que vigora em Portugal para esta classe de processos, absolveu os jornalistas.

O juiz Rangel recorreu então para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) onde também era juiz, e aí um colega seu inverteu a decisão de primeira instância e, decidindo contra a jurisprudência, condenou os jornalistas do CM a pagarem-lhe uma indemnização de 50 mil euros.

Sabe-se agora que esta decisão do TRL, de que foi relator o juiz Orlando Nascimento, esteve envolta em corrupção. A distribuição do processo foi manipulada, envolvendo o presidente do TRL, de modo a ir parar às mãos de um juiz que decidisse favoravelmente ao seu colega Rangel.

Se os juízes em Portugal, como os seus colegas brasileiros desde 2015, estivessem obrigados a seguir a jurisprudência, o juiz Orlando Nascimento nunca teria produzido o acórdão condenatório e a corrupção não teria vencido. O processo teria terminado ali no TRL com a chamada "dupla conforme" que absolvia definitivamente os réus.

Assim, a não-vinculação dos juízes à jurisprudência, não só abriu as portas à corrupção, como contribuiu para prolongar a demora na justiça, que é um dos maiores defeitos da justiça em Portugal. Um processo que poderia ter ficado concluído em 2015 só veio a estar concluído um ano depois quando o Supremo Tribunal de Justiça, para onde os jornalistas do CM recorreram da decisão da Relação, os veio a absolver definitivamente (cf. aqui). 

Não deixa de ser interessante notar a sequência das decisões judiciais à medida que o processo foi subindo na hierarquia dos tribunais, desde o tribunal de primeira instância até ao Supremo, passando pela Relação: absolvição, seguida de condenação, seguida de nova absolvição.  

Aquilo que é mais interessante é que as decisões de absolvição respeitam a jurisprudência do caso ao passo que a  decisão de condenação é contra a jurisprudência. Não é mera coincidência que a decisão contra a jurisprudência seja também a decisão corrupta. 

Na realidade, esta coincidência - entre corrupção e contradição da jurisprudência - fornece a chave para responder à seguinte questão: Como é que se apanha um juiz corrupto?

Um juiz corrupto apanha-se inquirindo, em primeiro lugar, se já alguma vez ele decidiu contra a jurisprudência.

É que um juiz que decide contra a jurisprudência está a cometer uma injustiça, absolvendo um criminoso ou - o que é pior ainda - condenando um inocente. 

A pergunta que se segue é imediata: Porquê?

Estará o juiz a ser pago para cometer a injustiça; estará a dar satisfação a alguma cunha de um amigo; estará a retribuir algum favor; estará pressionado por alguma instituição espúria à magistratura, como uma igreja ou um partido político?

No caso do juiz Orlando Nascimento parece ter sido a cunha de um amigo - do seu colega Rangel.

(Continua)

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