O caso BES, que tenho vindo a referir, ilustra na perfeição um dos piores vícios do nosso sistema de justiça criminal - o monopólio da acusação criminal por parte do Ministério Público.
Se me roubarem a carteira, eu não sou livre de acusar o ladrão em tribunal. O Ministério Público mete-se entre mim e o ladrão, e o ladrão só vai a tribunal se o MP assim o decidir. Caso contrário, não vai, e o ladrão vai permanecer para sempre na impunidade a roubar outros como eu.
Este monopólio da acusação criminal pelo MP não só confere aos procuradores do MP - que são funcionários públicos não-eleitos, uma mera burocracia do Estado - um enorme poder como escancara as portas à corrupção da Justiça.
É este argumento - resultante do poder de monopólio que o MP possui na acusação criminal - que me tem levado a concluir que a instituição mais corrupta dentro do sistema de Justiça, e muito provavelmente em todo o país, é o Ministério Público.
Na realidade, por via deste monopólio, é possível comprar magistrados do MP para não levarem a tribunal pessoas que lá deveriam ir porque cometeram crimes, ou para levarem a tribunal pessoas que não cometeram crime nenhum e, portanto, que não devia lá ir. Alguns casos são conhecidos publicamente.
Porém, estes casos que vêm a público são apenas a ponta do iceberg. Para conhecer o iceberg todo era necessário alguém possuir um poder para investigar o Ministério Público semelhante àquele que o Ministério Público possui para investigar qualquer pessoa ou entidade no país.
Pode ser que um dia a Assembleia da República se lembre de nomear uma Comissão de Inquérito (ou de Auditoria) ao MP. Os deputados vão, por certo, ficar estarrecidos. Só de imaginar aquilo que os procuradores do MP podem lucrar com o acesso às escutas telefónicas de altos decisores públicos e empresariais (só a Operação Marquês tem 40 mil horas de escutas) deixa qualquer pessoa inquieta acerca de uma corporação de funcionários públicos não-eleitos e que não presta contas a ninguém.
Em resultado do colapso do BES, e como se depreende do Despacho de Acusação, houve muitas queixas-crimes contra várias pessoas e entidades. Foram visados os administradores do BES, chefias intermédias, gestores de contas, empresas de auditoria, entidades de supervisão, etc.
Num sistema de justiça criminal livre e aberto - isto é, próprio de uma sociedade democrática -, cada pessoa lesada acusava quem considerava que a tinha lesado, por exemplo, o seu gestor de conta. Centenas de processos entrariam em tribunal em que clientes se queixavam dos seus respectivos gestores de conta. Em breve, surgiria uma jurisprudência sobre a matéria, determinando qual o grau de responsabilidade que os gestores de conta tiveram no processo. Ou, então, estas centenas de processos seriam agrupados em classes e julgados colectivamente.
Numa classe de acções os visados eram os gestores de conta, noutra os administradores do BES, noutra os auditores, noutra ainda as entidades de supervisão, etc, e tudo se resolvia assim em processos judiciais de dimensão comportável.
Porém, em Portugal o sistema de acusação criminal não é livre, ninguém é livre de acusar outra pessoa ou entidade. Apenas o Ministério Público o pode fazer. E aquilo que doutro modo teriam sido vários processos judiciais de dimensão comportável, tornou-se um megaprocesso que dificilmente alguém consegue julgar. Somente a acusação contém 4117 páginas. Quanto a testemunhas vão exceder provavelmente o milhar (no post em baixo, estão as testemunhas indicadas pelo MP; falta agora juntar as testemunhas por parte de cada um dos arguidos).
Mas não apenas isso. Foram os próprio procuradores do Ministério Público - que não são juízes, mas meros funcionários públicos - a pronunciar julgamento prévio sobre quem era criminoso e quem não era criminoso. E logo no início do processo trataram de "absolver" uma série de pessoas e entidades, como as chefias intermédias do BES, os gestores de conta, as empresas de auditoria e as entidades de supervisão, procedendo ao arquivamento das respectivas queixas, para concentrarem a acusação em apenas 18 arguidos, chefiados por Ricardo Salgado, e mais sete pessoas colectivas, num total de 25.
Todos os outros intervenientes - chefias intermédias, gestores de conta, até alguns administradores, para não falar nas empresas multinacionais de auditoria e nas entidades de supervisão - andaram lá no BES durante anos a receber os seus vencimentos e honorários, mas não viram nada, e não são responsáveis por nada.
Ninguém consegue acreditar neste mundo fantasioso que o Ministério Público construiu ao longo de seis anos de pretensa investigação criminal. E se o mundo que vai ser julgado é um mundo fantasioso, aquilo que de lá vai sair não pode ser certamente Justiça. É política.
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