21 março 2020

As expedições ao papel

Faltam-me as expedições ao papel. Mais do que sair à rua, faltam-me as expedições ao papel.

Não houve nenhuma esta semana e é improvável que seja organizada alguma nas próximas semanas tanto mais que os organizadores estão todos fechados em casa.

Falta-me a excitação de acordar, ligar o rádio logo pela manhã e ouvir aquelas notícias, que me enchem de excitação: "Dezoito magistrados do Ministério Público, sete juízes de instrução, coadjuvados por noventa e dois agentes da PSP fazem buscas na sede da empresa X, no clube de futebol Y, na câmara municipal Z..."

E depois, o epílogo, que vem nas notícias ao final do dia: "Foram constituídos setenta e três arguidos, apreendidos 408 computadores e dois milhões e trezentos mil documentos…Os crimes são de branqueamento de capitais, fuga ao fisco e prevaricação… mil novecentos e vinte seis no total...".

O record está em cinco milhões de documentos apreendidos numa busca às instalações do BES realizada há uns anos atrás.

A maior excitação ocorre dez anos depois quando ainda não se sabe o que foi feito aos arguidos, aos computadores e aos dois milhões e trezentos mil papeis porque ao processo foi atribuído o estatuto de "especial complexidade", assegurando assim que há tempo para o concluir até à eternidade.

Às vezes, existem episódios caricatos, mesmo quando a expedição não é, ela toda, caricata. Contou-me um amigo que assistiu a uma destas expedições que os agentes da autoridade irromperam escritório dentro aos gritos: "Ninguém mexe em nada!...". As pessoas que estavam sentadas a trabalhar nos seus computadores pararam num gesto do tipo mãos-no-ar, e ficaram à espera que os agentes de autoridade dissessem que papeis é que queriam levar ou que discos rígidos queriam apreender.

O problema é que eles próprios não sabiam que papeis queriam levar, e assim ficaram todos, o dia inteiro, a olhar uns para os outros, uns à espera que os agentes da autoridade dissessem que papeis queriam levar, os agentes da autoridade à espera de ordens superiores que definissem os papeis que eles tinham de levar.

Foi num período em que não havia coronavírus. Agora, seria perigoso ter tanta gente aos papeis confinada num escritório durante um dia inteiro. E na rua, também já não seria possível aglomerar tanta gente numa só expedição.

Na última expedição ao papel, que teve lugar há quinze dias, e foi denominada "Operação Fora de Jogo" juntaram-se 11 magistrados do Ministério Público, 7 magistrados judiciais, 101 inspectores tributários, 181 agentes da GNR e ainda agentes da PSP (cf. aqui). Hoje em dia, um tal ajuntamento numa só expedição constituiria um grave risco de saúde pública.

Por isso, tão cedo não teremos expedições ao papel organizadas pelo Ministério Público.

A minha tristeza é infinita. A vida perdeu todo o sabor.

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