27 janeiro 2020

Fixação da jurisprudência (II)

(Continuação daqui)

II. Querias!...


O advogado queria, portanto, que o Supremo fixasse a jurisprudência sobre se a expressão "Vai para o caralho" é ou não crime de injúrias.

E o que respondeu o Supremo?

-Querias!...

Escudando-se num artigo do Código do Processo Penal - o que havia de ser? - o Supremo Tribunal de Justiça recusou-se a fazer jurisprudência sobre a questão.

Mas, ainda assim, deixou uma resposta implícita - e uma resposta bem portuguesa - à questão que lhe foi colocada e que consiste em saber se a expressão "Vai para o caralho" é crime ou não é crime.

A resposta é a seguinte:

-Depende. Depende das circunstâncias.

A resposta é bem portuguesa, não é Sim nem Não. É Nim, deixando os portugueses para sempre na incerteza acerca de saber se podem ou não dizer "Vai para o caralho" ao adepto do clube rival sem serem criminalizados e, no limite, postos na prisão.

O acórdão do Supremo (*) é um acórdão muito interessante em vários aspectos, mas o mais interessante de todos encontra-se numa nota de pé de página. Esta:

«[7] Como anota Sérgio Luís de Carvalho, in “Dicionário de Insultos”, Editorial Planeta, pág. 52 “Este é, de facto, um dos insultos mais comuns e mais incisivos da nossa língua. E deve dizer-se que o termo caralho só existe nas línguas latinas ibéricas e em mais lado algum. (...)» 

A novidade é que o termo caralho só existe em Portugal e Espanha (carajo). De onde se segue que a expressão "Vai para o caralho" ("Vete al carajo") só tem sentido nos dois países ibéricos e é intraduzível e perfeitamente incompreensível em qualquer outro país da Europa.

Ora, quando Portugal e a Espanha, sob Salazar e  Franco, respectivamente, eram países fechados, autoritários, provincianos e atávicos, não só não existia liberdade de expressão, como mandar alguém para o caralho - sobretudo alguém em posição de poder - era uma grande ofensa à sua honra.

Mas Portugal e Espanha não são mais esses países que eram há cinco ou seis décadas atrás. Hoje são países abertos, democráticos, cosmopolitas e progressivos fazendo parte do Conselho da Europa e tendo subscrito a Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

A CEDH garante os direitos humanos fundamentais de maneira igual para os mais de 400 milhões de cidadãos dos 47 países que a subscreveram e, evidentemente, não pode admitir excepções para gregos ou para troianos só porque os gregos ou os troianos são particularmente sensíveis e  ofendíveis acerca de uma palavra ou expressão da sua língua..

O TEDH tem 47 juízes, um por cada país que subscreveu a Convenção, e decide normalmente por um colectivo de sete juízes. O que é que acontecerá - se é que já não aconteceu - se um dia a expressão "Vai para o caralho" fôr levada à sua consideração para que os juizes decidam se é crime ou não é crime?

Nenhum dos juizes compreenderá sequer o significado da expressão - excepto se no colectivo estiver o português ou o espanhol. A decisão é mais que certa:

-Não é crime nenhum. É liberdade de expressão.

Quer dizer, um dia, o Supremo Tribunal de Justiça vai fazer outro acórdão sobre a mesma matéria onde, invocando a jurisprudência do TEDH, virá dizer que não é crime nenhum um cidadão dizer a outro "Vai para o caralho"

Esse dia já esteve mais longe (cf. aqui).

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(*) O texto integral do acórdão do Supremo pode ser consultado aqui.

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