21 janeiro 2020

A honra (I)

I. Uma questão de semântica


Os crimes contra a honra (v.g., difamação, ofensas, injúrias) não existem na maior parte dos países com uma longa tradição democrática. Em 2010, o Conselho da Europa, que integra o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, emitiu uma recomendação a todos os países membros - incluindo Portugal - para descriminalizar as ofensas à honra. Desde então, praticamente todos os anos renova a recomendação (cf. aqui)

Mas Portugal continua a fazer orelhas moucas. Isso tem-lhe valido sucessivas condenações no TEDH cuja jurisprudência, pondo em confronto o direito à liberdade de expressão e o direito à honra, valoriza decisivamente o primeiro sobre o segundo, como é próprio de uma cultura democrática (os regimes autoritários é que valorizam o segundo sobre o primeiro).

A honra tem ainda, portanto, em Portugal, um grande valor. Mas como mostrei na amostra que reuni em baixo (cf. aqui), o valor da honra não é igual para todos, significando que a honra é um valor nada democrático.

Nos 19 casos de ofensas à honra que juntei, não existe um só em que o ofendido seja um cidadão comum. Os ofendidos são todos pessoas com poder, juízes, magistrados do MP, advogados, políticos, empresários, grandes empresas, administradores públicos e até um funcionário público (que antes fora presidente de Junta).

Quer dizer, a julgar por esta amostra, a protecção que a nossa legislação penal dá à honra não se destina a proteger a honra do cidadão comum. Destina-se a proteger a honra daqueles que têm alguma forma de poder e a dar-lhe a possibilidade de cometer aquele tipo de crimes que, por serem legais, o cidadão comum geralmente considera que não são crimes, como a intimidação, a tentativa de extorsão, a chantagem, a extorsão e o enriquecimento ilícito.

À luz de uma cultura democrática, as ofensas à honra não são crimes nenhuns. E, por isso mesmo, é por vezes hilariante acompanhar as discussões em tribunal relativas aos alegados crimes de ofensas à honra, bem como as sentenças e os acórdãos que são produzidos pelos tribunais a este respeito. A discussão acaba frequentemente em interpretações semânticas e etimológicas e, não raramente, é um sentido  ou outro que se dá a uma palavra ou a uma expressão que determina se há crime ou não há crime.

Quer dizer, nos alegados crimes de ofensas à honra o crime é uma questão de semântica.


(Continua)

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