Na minha aventura por dentro do sistema de justiça português, através do meu case-study, tenho-me deparado com situações verdadeiramente surpreendentes e que eu pensava não existirem em tão alto poder do Estado - o mais alto poder do Estado numa democracia - como é o poder judicial.
Uma dessas situações é a frequência e a naturalidade das situações de conflito de interesses que tenho vindo a encontrar dentro do sistema de justiça. A situação de conflito de interesses é aquela em que uma pessoa se coloca simultaneamente em duas ou mais posições de tal modo que, para realizar uma, tem de prejudicar a outra.
A primeira foi, obviamente, aquela em que assentou o meu comentário televisivo, que era a de o eurodeputado Paulo Rangel ser ao mesmo tempo deputado e director de uma grande sociedade de advogados. Hoje, essa situação está proibida depois de o Parlamento ter aprovado uma lei nesse sentido no início do Verão.
Eu gosto de pensar que contribuí alguma coisa para gerar o clima de opinião que levou à aprovação dessa lei (com os votos contra do PSD e do CDS).
Dias depois de ter recebido o acórdão do Tribunal da Relação do Porto (cf. aqui), que me condenava pelo crime de difamação agravada ao Paulo Rangel, e confirmava a condenação de primeira instância pelo crime de ofensas à Cuatrecasas, eu dirigi - através do meu advogado - um requerimento ao TRP pedindo a anulação do acórdão.
O requerimento era fundamentado em duas situações de conflito de interesses em que se encontrava o juiz relator do acórdão, Pedro Vaz Patto:
(i) O juiz Vaz Patto é um participante activo no debate público de questões sociais e políticas, tal como eu. A diferença é que ele exprime posições radicalmente anti-liberais, ao passo que eu sou, às vezes, considerado o pai do neoliberalismo em Portugal e um ultraliberal esganiçado (cf. aqui).
Ora, ao julgar-me numa questão de liberdade de expressão, o juiz Vaz Patto, passava a ser ao mesmo tempo jogador e árbitro no campo da opinião pública, colocando-se numa situação de conflito de interesses que comprometia a sua imparcialidade. Era apenas natural - as suas posições públicas assim o indicavam - que decidisse contra a liberdade de expressão e penalizasse um opositor às suas ideias políticas, como veio a acontecer.
(ii) Mais importante ainda, o juiz Vaz Patto convivia com o político Paulo Rangel numa organização de beneficência - a associação O Ninho -, o juiz como presidente da Assembleia Geral, o Paulo Rangel como membro da Comissão de Honra (cf. aqui).
É natural que, na condição de representante máximo da instituição, o juiz Vaz Patto desejasse agradecer ao Paulo Rangel o favor de ter aceite fazer parte da Comissão de Honra. Não teria o juiz Vaz Patto utilizado o acórdão para lhe pagar o favor, decidindo a favor dele como decidiu?
Em ambos os argumentos, estava em causa o respeito pelo meu direito a um julgamento imparcial previsto no artigo 6º da Convenção Europeia do Direitos Homem (cf. aqui). Segundo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, este direito é violado desde que exista, aos olhos do homem comum, "uma dúvida legítima" acerca da imparcialidade do juiz. E eu, em lugar de ter só uma dúvida legítima, tinha duas.
A minha primeira surpresa, passados dias, foi a de saber que o Papá Encarnação, em representação da acusação particular, e o magistrado Y (Vasco Guimarães), em representação da acusação do Estado, tinham saído em defesa do juiz Vaz Patto, pedindo ao TRP que o meu requerimento fosse indeferido. No lugar deles, eu nunca teria feito tal coisa. Ao defenderem o juiz, eles puseram o juiz sob julgamento, aceitando a seriedade das minhas alegações acerca da sua imparcialidade (ou da falta dela).
O Papá Encarnação, naquele seu jeito peculiar de advogado de província, para o qual o valor mais alto é o do respeitinho, veio dizer que não havia gravidade nenhuma nas situações em que o juiz se colocara. Grave, verdadeiramente grave, era eu questionar a idoneidade de um órgão de soberania - um juiz. Eu quase caí para o lado com a gravidade (gravitas) do argumento.
O magistrado Y veio dizer que um juiz não é necessariamente uma pessoa asséptica e tem direito a ter uma vida social.
Claro que tem - pensei eu -, tem direito a ter uma vida social e ainda mais a ter uma vida pessoal e até íntima. Tem todo o direito, por exemplo, a casar e a dormir com a sua mulher na cama como fazem, normalmente, os homens casados. Não pode é depois, na sua qualidade de juiz, ir julgar processos em que estejam em causa interesses da mulher (ver, para exemplo, o post em cima).
Cerca de mês e meio depois, num despacho assinado pela juiz-desembargadora Paula Guerreiro, tomei conhecimento de que o meu requerimento tinha sido indeferido.
Na sua argumentação, a juiz Paula Guerreiro, refere o argumento (i) - que sim, que o juiz Vaz Patto, tal como eu, escreve e fala para a comunicação social -, mas nunca se refere à situação de conflito de interesses que isso envolve para ele e que põe em causa a sua imparcialidade. E quanto ao argumento (ii), que é ainda mais importante, e que seguiu acompanhado de documentação que o fundamentava, quanto a esse, nem uma palavra.
Por outras palavras, na ânsia de cobrir o seu colega Vaz Patto, a juiz Paula Guerreiro decidiu assobiar para o lado, como se diz na gíria. Fica-lhe muito bem essa atitude de protecção ao colega em termos corporativos, mas é mais uma injustiça que é cometida sobre mim - e ela, até agora, ainda não tinha cometido nenhuma (apenas os seus dois colegas).
Como é que eu (sempre através do meu advogado, porque em Portugal não existe a liberdade de o réu se defender por si próprio) reagi?
Enviando um novo requerimento ao TRP onde peço a anulação do despacho assinado pela juiz Paula Guerreiro, com a seguinte fundamentação:
a) Primeiro, faz favor de o TRP se pronunciar sobre as relações entre o juiz Vaz Patto e o político Paulo Rangel no seio da associação O Ninho, que põem em causa a imparcialidade do primeiro. Não o ter feito viola o meu direito de acesso a um tribunal que também está previsto no artigo 6º da CEDH. Trata-se do direito que assiste a cada pessoa de ter a sua causa examinada por um tribunal. Ora, o TRP pura e simplesmente não se pronunciou sobre a causa que lhe submeti para apreciação.
b) Segundo, e quando o TRP se pronunciar, faz favor de o fazer através do colectivo de juízes, e não através de um juiz singular (Paula Guerreiro), porque é assim que se pronuncia um tribunal superior como é o TRP.
Aguardo resposta. Mas não estou nada optimista. O TRP vai continuar a assobiar para o lado.
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