27 setembro 2018

O Grande Mistério (I)


I. O piar do passarinho


Existe um mistério no meu julgamento que eu ainda não consegui desvendar, e é um grande mistério. É um mistério que envolve o magistrado X que é, em si mesmo, a figura mais misteriosa do meu julgamento.

E certamente a mais enigmática. Dos vinte intervenientes na acusação - dois magistrados do MP, uma juíza-de-instrução, dois advogados de acusação e catorze testemunhas - é o único cujo nome eu ainda não conheço.

Ao pegar na sentença, fiquei a conhecer o nome do juiz e até da escrivã, uma senhora muito simpática que, de vez em quando, olhava para mim com um sorriso de compaixão. Mas o do magistrado X não está lá. Conheço o nome do colega que produziu a acusação, António Prado e Castro, mas continuo sem conhecer o nome do magistrado X.

Perguntei à minha advogada, que me respondeu que em breve iria ter um outro julgamento com ele.

-Mas como é que ele se chama?

-Ah... isso não sei...

Claro que eu não acreditei na minha advogada. Ela não quer muitas conversas comigo porque considera que eu fui o maior obstáculo ao trabalho dela durante o julgamento. E eu concordo, ao mesmo tempo que penso:

-E um obstáculo ainda maior ao trabalho dos colegas dela que estavam do outro lado da barricada...

Eles pensavam que iam ter ali, como de costume, um passarinho fechado na gaiola do banco dos réus, que não podia piar, enquanto eles piavam à vontade. E, na verdade, o passarinho só piou ali por duas vezes, na primeira e na última sessão do julgamento, em ambas sob autorização do juiz. De resto, passou ali quatro meses caladinho, a ouvi-los piar livremente a eles.

Só que, quando saía cá para fora, o passarinho piava... e se piava... e foi isso que os destrambelhou.

O mistério que eu tenho para desvendar em torno do magistrado X tem que ver com o piar do passarinho - e eu já estou a desvendar o mistério, antes mesmo de dizer em que é que o mistério consiste.

É que em torno do magistrado X eu alimento muitos mistérios.

É de longe a personalidade mais interessante do processo judicial entre as vinte que eu vi desfilar pelo lado da acusação. E se me dessem a possibilidade de um dia almoçar com uma delas, escolhendo apenas uma, a minha resposta seria pronta:

-Magistrado X,

e oferecer-me-ia logo para ser eu a pagar o almoço.

É que o magistrado X personifica na minha mente o exemplo perfeito daquela dicotomia que é central no meu livro "F. - Portugal é uma figura de mulher", que é um livro que dediquei à minha primeira neta, e que trata de piratas. É a dicotomia entre o pirata bom e o pirata mau.

Eu faço a mais alta ideia acerca das qualidades pessoais do magistrado X. Deve ser um tipo afável, bon vivant, a gostar de conviver, a apreciar umas almoçaradas bem  regadas entre amigos, o tipo que não faz mal a ninguém e, ao mesmo tempo, a possuir em alto grau uma qualidade  que eu muito aprecio porque eu próprio não a tenho - a argúcia. A ele ninguém o engana.

Mas depois, em cada manhã, quando entra ao serviço, e até sair do serviço, ele transforma-se radicalmente. O pirata bom que existe nele dá lugar ao pirata mau. O Ministério Público é como uma máquina de fazer salsichas: entra pirata bom de um lado e sai pirata mau do outro.

Não foram raras as vezes que, sentado no banco dos réus, me perguntei:

-Como é que um tipo destes não arranja outro emprego?...

É altura, porém,  de revelar o grande mistério que me vai ocupar nos próximos capítulos, entre os vários mistérios que eu tenho acerca do magistrado X:

-Por que é que o magistrado X não compareceu à 5ª sessão do meu julgamento?

Aquilo estava tudo a correr tão bem...


(Continua)


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