Portugal tem um sistema de justiça criminal próprio de uma sociedade autoritária ou paternalista. Não surpreende que assim seja, trata-se de uma tradição, porque Portugal viveu a maior parte da sua história sob regimes desta natureza (monarquia absoluta e, mais recentemente, o regime do Estado Novo).
Na sua forma pura, praticada na família, aquilo que caracteriza a justiça paternalista é que o acusador, na figura do pai, é ao mesmo tempo o juiz. Mas este sistema de justiça possui uma outra característica importante. É a de que o juiz-acusador (pai) tem uma relação de bem-querer em relação ao réu (filho). É esta relação, a qual releva do carácter comunitário da família, que humaniza a justiça autoritária ou paternalista. (E é a ausência dela que num regime político não-comunitário ou partidário torna este sistema de justiça imensamente cruel).
Este sistema de justiça foi levado ao extremo durante a Inquisição quando foi necessário defender a unidade da comunidade contra o divisionismo protestante o qual, ao mesmo tempo, no centro e no norte da Europa, causava milhões de mortos em violentas guerras religiosas e civis.
No Tribunal do Santo Ofício, o juiz era ao mesmo tempo o acusador-chefe, de tal modo que quem caísse nas malhas da justiça era de certeza condenado. Os alvos eram os hereges, normalmente intelectuais portadores de ideias e opiniões que eram fracturantes da comunidade. Foram os intelectuais o grupo social mais influente na origem da democracia partidária moderna.
Portugal e Espanha foram os países que, nos primórdios da modernidade, estiveram na frente de combate às ideias fracturantes que sopravam do norte da Europa - e a Inquisição foi instrumental nesse combate -, mas acabaram por perder e sucumbir às ideias dos adversários. Como em todas as derrotas, foi uma aceitação relutante da superioridade do adversário, e acompanhada do devido ressentimento.
À superfície, Portugal e Espanha são hoje países democráticos, em que um voto é concedido a cada pessoa. Intimamente, porém, os portugueses e os espanhóis mantêm-se fieis à sua tradição monárquica e comunitária de longos séculos, e detestam a democracia partidária. O ideal de uma sociedade ordenada, hierarquizada e orientada para o bem-comum permanece vivo nos seus corações. Na realidade, foi com uma sociedade assim que ambos os países se tornaram grandes na sua história.
Este ideal permanece de tal modo vivo na sua cultura que, a despeito da aparência democrática de "um voto a cada pessoa", ambos os países conservam instituições que são próprias da sociedade tradicional e autoritária em que historicamente viveram e pela qual se bateram.
A justiça é um exemplo flagrante. O Tribunal do Santo Ofício está ali, quase tintim-por-tintim, no moderno Tribunal de Instrução Criminal, um tribunal que aplica penas que podem chegar à prisão e em que o juiz - chamado juiz de instrução criminal - é também o acusador-chefe.
Nos tribunais de julgamento, a situação é pouco melhor. O juiz já não é o acusador, mas o acusador (magistrado do Ministério Público) senta-se ao lado do juiz e tem as mesmas honrarias do juiz, a tal ponto que a maior parte das pessoas sem experiência na matéria, ao entrarem numa sala de audiências, pensam que estão a ser julgadas por dois juízes.
Mas não apenas isso. Juiz e acusador público, especialmente nas comarcas mais pequenas, à força de participarem em conjunto nos mesmos julgamentos, tornam-se verdadeiros colegas de trabalho e, seguramente, muitos deles acabam por se tornar amigos.
Durante o julgamento, entram ao mesmo tempo na sala de audiências, e retiram-se ao mesmo tempo no final, e durante os intervalos recolhem-se ao mesmo lugar. É natural que falem do processo e que troquem opiniões sobre ele. Esta intimidade entre o acusador oficial e o juiz não tem outro fim senão o de influenciar o juiz no sentido da acusação e, portanto, da condenação.
Como se isso não bastasse, quando a queixa é privada, o queixoso (chamado assistente no processo), tem direito a nomear um advogado de acusação que secunda o acusador oficial (magistrado do MP). Quem entra num tribunal criminal português, na democrática República Portuguesa do século XXI, não pode acreditar no que vê: um juiz, um réu, um escrivão, dois acusadores e um só defensor.
Somente esta aritmética dá ao réu uma probabilidade de 2/3 ou 66.7% de ser condenado. Se lhe juntarmos a intimidade que o acusador oficial tem com o juiz, a probabilidade sobe para 80 ou 90%. Não é a condenação certa, ou com 100% de probabilidade, como no Tribunal da Inquisição. Mas não fica muito longe.
Chamar a isto justiça (democrática), só se for por distração. E quanto às condições de independência do juiz - independência que é a condição sine qua non da sua imparcialidade -, é melhor nem falar.
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