Na altura, eu não pensei sequer nos riscos que corria.
Aos écrans de uma televisão, ainda que regional, eu dava regularmente conta dos progressos de uma obra mecenática que se destinava a crianças doentes. Volta-não-volta, um dia agora, umas semanas depois, voltava ao assunto, e pedia às pessoas que se juntassem à obra e contribuíssem.
O montante era elevado: 20 milhões de euros.
Embora sem nunca ter sido explícito, sendo o presidente da associação mecenática e tendo de dar o exemplo, quem me visse ao final de algumas semanas tirava uma conclusão óbvia, a saber, que eu tinha mais do que aquilo de que necessitava para viver, e queria dar uma parte.
A quem me perguntasse, ou mesmo a quem não me perguntasse, eu dava uma explicação: "Aquilo que sou e aquilo que tenho devo-o, em parte, aos portugueses. É altura de retribuir".
Nunca se sabe quem está a ver-nos do outro lado do écran. E só muito mais tarde me dei conta que tinha incorrido num grande risco - eu estava a atrair os ladrões.
Passados três anos, qual o balanço que faço da experiência e do risco que tão inconscientemente assumi?
Francamente positivo.
O gang do Manaca, e alguns dos seus concorrentes, especializam-se no assalto a palacetes. Ora, eu sou sócio de uma empresa que tem o meu nome, e cuja sede está localizada num palacete na zona mais privilegiada da cidade do Porto - a Foz. O meu nome está gravado na porta em letras gordas para que não haja dúvidas, em caso de problema, quem é o responsável por tudo o que se passa lá dentro.
E é também uma informação para os ladrões, que ficam saber quem é o principal lesado da sua actividade naquele local. Pois, ao longo destes três anos, o palacete, que nem sequer tem segurança, nunca foi alvo de qualquer tentativa de assalto. Não houve sequer indícios de que alguém tivesse saltado o muro, menos ainda sinais de intrusão no edifício.
O gang do Manaca deve ter pensado - se alguma vez teve o desejo -, que assaltar aquele palacete era estar a assaltar crianças doentes, porque era lá dentro que a parte executiva da obra mecenática se desenvolvia. E que tudo o que pudessem levar de lá, significava menos que ia parar às crianças.
E, depois, o que diriam os seus pares quando um dia fossem apanhados e se juntassem em Custóias:
-Que gang que vocês são...a roubar dinheiro de crianças doentes!...
Não teriam uma vida fácil na prisão porque mesmo entre os gangs existe uma ética - "há pessoas a quem não se rouba, certamente que não a crianças doentes".
O Gang dos Popós especializa em carros de luxo, de BMW's para cima, Mercedes, Ferraris, Porsches, Lamborghinis. Actuam no grande Porto e já me devem ter seguido. Mas nunca me roubaram o carro.
À última da hora, a vontade não lhes deve faltar, mas até no Gang dos Popós existe compaixão: "Roubamos-lhe o popó, ele vai ter de ir comprar outro, e lá fica menos dinheiro para os putos".
Ao contrário de certa informação que sobre mim tem vindo a público nas últimas semanas, eu não vivo numa moradia na Foz. Eu vivo num apartamento nos Pinhais da Foz, mesmo junto ao popular bairro da Pasteleira.
A malta da Pasteleira é feita de grandes portistas para quem o herói nacional é o Pinto da Costa, o homem que lhes dá algumas e as mais importantes das poucas alegrias que têm na vida. São telespectadores habituais do Porto Canal. O segurança e a mulher da limpeza do meu prédio são da Pasteleira, e com ele eu cultivo todos os dias a grande rivalidade entre o Benfica e o F. C. Porto.
Pois nem da Pasteleira nem do Bairro do Aleixo, que fica a pouca distância, alguma vez veio alguém limpar o meu apartamento sem a minha autorização. E eles conhecem-me da televisão e de passarem por mim na rua. Sou amigo de alguns.
E a Quina, o que dizer da célebre Quina (cf. aqui)?
Ela é uma das figuras mais famosas do Porto e vive a seis ou sete quilómetros de minha casa.
Eu frequento os mesmo lugares que ela, a Avenida dos Aliados, passeio nos Clérigos, janto na Ribeira, atravesso a ponte até ao Cais de Gaia, faço jogging em Francelos.
Estou certo que alguma das netas a quem ela presumivelmente anda a ensinar a arte, já algum dia me topou e lhe disse:
-Olha ali, avó...aquele senhor da televisão...
E ela:
-Não filha... aquele senhor, não...
A neta:
-Porquê, avó?...
E a Quina:
-Olha, filha.. aquele senhor também tem netos...mas se algum ficar doente, vai para um hospital de luxo....ao passo que tu vais ter mesmo de ir para o S. João...
Apesar da inconsciência que cometi, e dos riscos a que me expus, a minha experiência, ao longo destes últimos três anos, é francamente positiva, e confirma tudo aquilo que há muito tempo penso acerca dos portugueses. São excelentes pessoas.
Não fossem os advogados da Cuatrecasas. Mas esses parece que são espanhóis.
2 comentários:
Entonces?
clap clap clap clap!
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