10 junho 2018

a Quina

Na altura, eu não pensei sequer nos riscos que corria.

Aos écrans de uma televisão, ainda que regional, eu dava regularmente conta dos progressos de uma obra mecenática que se destinava a crianças doentes. Volta-não-volta, um dia agora, umas semanas depois, voltava ao assunto, e pedia às pessoas que se juntassem à obra e contribuíssem.

O montante era elevado: 20 milhões de euros.

Embora sem nunca ter sido explícito, sendo o presidente da associação mecenática e tendo de dar o exemplo, quem me visse ao final de algumas semanas tirava uma conclusão óbvia, a saber, que eu tinha mais do que aquilo de que necessitava para viver, e queria dar uma parte.

A quem me perguntasse, ou mesmo a quem não me perguntasse, eu dava uma explicação: "Aquilo que sou e aquilo que tenho devo-o, em parte, aos portugueses. É altura de retribuir".

Nunca se sabe quem está a ver-nos do outro lado do écran. E só muito mais tarde me dei conta que tinha incorrido num grande risco - eu estava a atrair os ladrões.

Passados três anos, qual o balanço que faço da experiência e do risco que tão inconscientemente assumi?

Francamente positivo.

O gang do Manaca, e alguns dos seus concorrentes, especializam-se no assalto a palacetes. Ora, eu sou sócio de uma empresa que tem o meu nome, e cuja sede está localizada num palacete na zona mais privilegiada da cidade do Porto - a Foz. O meu nome está gravado na porta em letras gordas para que não haja dúvidas, em caso de problema, quem é o responsável por tudo o que se passa lá dentro.

E é também uma informação para os ladrões, que ficam saber quem é o principal lesado da sua actividade naquele local. Pois, ao longo destes três anos, o palacete, que nem sequer tem segurança, nunca foi alvo de qualquer tentativa de assalto. Não houve sequer indícios de que alguém tivesse saltado o muro, menos ainda sinais de intrusão no edifício.

O gang do Manaca deve ter pensado - se alguma vez teve o desejo -, que assaltar aquele palacete era estar a assaltar crianças doentes, porque era lá dentro que a parte executiva da obra mecenática se desenvolvia. E que tudo o que pudessem levar de lá, significava menos que ia parar às crianças.

E, depois, o que diriam os seus pares quando um dia fossem apanhados e se juntassem em Custóias:

-Que gang que vocês são...a roubar dinheiro de crianças doentes!...

Não teriam uma vida fácil na prisão porque mesmo entre os gangs existe uma ética - "há pessoas a quem não se rouba, certamente que não a crianças doentes".

O Gang dos Popós especializa em carros de luxo, de BMW's para cima, Mercedes, Ferraris, Porsches, Lamborghinis. Actuam no grande Porto e já me devem ter seguido. Mas nunca me roubaram o carro.

À última da hora, a vontade não lhes deve faltar, mas até no Gang dos Popós existe compaixão: "Roubamos-lhe o popó, ele vai ter de ir comprar outro, e lá fica menos dinheiro para os putos".

Ao contrário de certa informação que sobre mim tem vindo a público nas últimas semanas, eu não vivo numa moradia na Foz. Eu vivo num apartamento nos Pinhais da Foz, mesmo junto ao popular bairro da Pasteleira.

A malta da Pasteleira é feita de grandes portistas para quem o herói nacional é o Pinto da Costa, o homem que lhes dá algumas e as mais importantes das poucas alegrias que têm na vida. São telespectadores habituais do Porto Canal. O segurança e a mulher da limpeza do meu prédio são da Pasteleira, e com ele eu cultivo todos os dias a grande rivalidade entre o Benfica e o F. C. Porto.

Pois nem da Pasteleira nem do Bairro do Aleixo, que fica a pouca distância, alguma vez veio alguém limpar o meu apartamento sem a minha autorização. E eles conhecem-me da televisão e de passarem por mim na rua. Sou amigo de alguns.

E a Quina, o que dizer da célebre Quina (cf. aqui)?

Ela é uma das figuras mais famosas do Porto e vive a seis ou sete quilómetros de minha casa.

Eu frequento os mesmo lugares que ela, a Avenida dos Aliados, passeio nos Clérigos, janto na Ribeira, atravesso a ponte até ao Cais de Gaia, faço jogging em Francelos.

Estou certo que alguma das netas a quem ela presumivelmente anda a ensinar a arte, já algum dia me topou e lhe disse:

-Olha ali, avó...aquele senhor da televisão...

E ela:

-Não filha... aquele senhor, não...

A neta:

-Porquê, avó?...

E a Quina:

-Olha, filha.. aquele senhor também tem netos...mas se algum ficar doente, vai para um hospital de luxo....ao passo que tu vais ter mesmo de ir para o S. João...

Apesar da inconsciência que cometi, e dos riscos a que me expus, a minha experiência, ao longo destes últimos três anos, é francamente positiva, e confirma tudo aquilo que há muito tempo penso acerca dos portugueses. São excelentes pessoas.

Não fossem os advogados da Cuatrecasas. Mas esses parece que são espanhóis.


2 comentários:

Manel da Calçada disse...

Entonces?

Anónimo disse...

clap clap clap clap!