10 fevereiro 2018

o tango

Este case study, que é uma questão de debate público democrático transformada em questão judicial, tem uma enorme vantagem. É um caso muito simples para a opinião pública. Basta ver o vídeo e cada um perguntar-se a si próprio: "Que crimes foram cometidos aqui?".

E como é um caso muito simples vai servir-me para ilustrar muitos dos problemas da vida pública portuguesa, a começar pela ausência de uma tradição democrática, e indo até às instituições que, afirmando-se democráticas, frequentemente não o são. Como é o caso da Justiça, o poder mais importante dentre os três poderes de um Estado democrático.

Neste post, utilizo o case study para tratar o problema dos conflitos de interesses em que frequentemente vivem os políticos portugueses.

No ano de 2012, a sociedade de advogados Cuatrecasas - que é um sociedade multinacional de advogados, com sede em Espanha, e que se expandiu para Portugal, primeiro para Lisboa comprando o escritório de advogados Gonçalves Pereira, e depois também para o Porto - tomou uma decisão que lhe terá trazido muitos benefícios inicialmente mas que, mais tarde, lhe viria a causar alguns dissabores.

Foi a decisão de contratar como director dos seus escritórios do Porto o eurodeputado Paulo Rangel, que, havia pouco tempo, tinha também sido eleito vice-presidente do PSD, que era o partido que estava no Governo na altura.

Como diz o Professor Jónatas Machado no seu livro "Liberdade de Expressão", "há situações da vida pública (democrática) em que é irresponsável não especular".

Daí a questão: o que é que pode levar uma sociedade de advogados a contratar para seu director um político que, sendo embora também jurista,  ocupava a sua vida praticamente só com a política (Bruxelas onde funciona o Parlamente Europeu, Lisboa onde é a sede do PSD, e Porto, onde vive e - o mal começa aqui - onde já tinha na altura outras actividades privadas)?

Para ele ir defender casos de facada para os tribunais da Província? Para ele se sentar nos escritórios da Cuatrecasas na Avenida da Boavista a preencher os papéis de candidatura de uma empresa-cliente ao programa comunitário Portugal 2020?

Claro que não. O director Paulo Rangel era útil à Cuatrecasas para mover influências em Bruxelas e junto do Governo português em Lisboa, em benefício dos clientes da Cuatrecasas, e ainda para angariar clientes para a Cuatrecasas junto de ministérios e outras instituições públicas que tinham agora administrações nomeadas pelo PSD.

Como é normal em Portugal, o assunto passou despercebido da opinião pública, mas algumas questões passaram a ser pertinentes: Então, um eurodeputado, em quem a população portuguesa confiou a missão de a representar em Bruxelas, utiliza essa função para, com benefício próprio, alavancar interesses privados, em contravenção de toda a ética democrática e do próprio Código de Conduta do Parlamento Europeu?

E, sendo vice-presidente do Partido Popular Europeu, aceita funções privadas (ele viria a aceitar outras para além de director da Cuatrecasas), colocando-se na situação de possuir um forte incentivo - pelo salário que lhe pagam - para andar a influenciar o Governo, outros órgãos da administração e as instituições comunitárias - situação para a qual está muito bem posicionado -, em benefício de interesses privados, e estranhos ao interesse público?

Que confiança pode o público ter num eurodeputado e num vice-presidente do Partido que está no poder, e que utiliza essas funções públicas para prosseguir interesses privados, incluindo os seus?

A situação não demorou muito a vir a público.

Em Outubro de 2014 era divulgado um relatório da Transparency International, amplamente noticiado pela comunicação social portuguesa, que analisava as situações de conflitos de interesse entre os deputados do Parlamento Europeu.

O eurodeputado português Paulo Rangel era o 16º (entre os 751 eurodeputados) com maiores conflitos de interesses, e o campeão entre os eurodeputados portugueses. Dizia o relatório que, além do salário-base (8 mil euros), juntando os diversos subsídios, a remuneração de um eurodeputado pode chegar a 20 mil euros por mês. A juntar a isto, ainda segundo o relatório, o eurodeputado Paulo Rangel auferia entre 6 e 17 mil euros mensais resultantes da suas actividades privadas.

Que representante do povo português é este que pode ganhar num mês aquilo que o português médio não ganha em três anos - cerca de 37 mil euros? As actividades privadas do eurodeputado Paulo Rangel eram, ainda segundo o relatório: advogado, membro da direcção da Associação Comercial do Porto, presidente da assembleia geral de um grupo empresarial, docente universitário  e colaborador dos media.

São, de facto, muitas actividades privadas para um homem só, para além das suas actividades públicas. É difícil a um só homem fazer tanta coisa bem quando tem actividades tão importantes e numerosas dispersas por três cidades da Europa: Lisboa, Bruxelas, Porto.

Não surpreende que o relatório da agência internacional acrescentasse que o eurodeputado Paulo Rangel só comparecia a 58% das reuniões do Parlamento Europeu, faltando a quase metade (42%).

Passado pouco mais de seis meses, em Maio de 2015, o eurodeputado Paulo Rangel e a sociedade de advogados Cuatrecasas, na qualidade de assessora jurídica do Hospital de S. João (é bem provável que tenha sido ele a trazer este cliente para a Cuatrecasas), é chamada a produzir um documento para uma obra mecenática.

A natureza do documento já tinha sido objecto de discussão um ano antes entre a direcção da Associação mecenática e a Cuatrecasas, representada pelo seu director Paulo Rangel e Filipe Avides Moreira, mas o documento que agora era apresentado era absolutamente oposto àquele que tinha sido acordado.

A Associação mecenática, durante mês e meio, procurou negociar o documento, mas sem efeito. A obra - a construção de um hospital pediátrico - estava parada por causa do documento e os custos estavam a correr.

Até que um dia o Presidente da Associação, cansado de esperar e com os custos da obra a correr, chegou à televisão e desancou o director da Cuatrecasas (com tantos afazeres, ele não devia ter tempo para dar atenção ao assunto) e por arrastamento, a própria empresa. Na semana seguinte o assunto estava resolvido.

Meses depois, surgia a notícia de que, por mútuo acordo, o eurodeputado Paulo Rangel abandonava as funções de director da Cuatrecasas, sendo substituído por Filipe Avides Moreira.

A relação entre o eurodeputado Paulo Rangel e a Cuatrecasas, que começara por ser discreta, revestia agora foros de escândalo público. Não interessava mais a nenhuma das partes. O eurodeputado Paulo Rangel devia sentir-se envergonhado pela situação de conflito de interesses em que se encontrava e pelo escândalo público em que se via envolvido.

A Cuatrecasas, que se tinha aproveitado disso até então, sentia que ter o eurodeputado Paulo Rangel a director se tornara um ónus e lhe manchava a reputação. É verdade que manchava, mas a Cuatrecasas contribuiu para isso. A Cuatrecasas sabia que, ao contratá-lo para director, o tinha colocado numa situação de conflito de interesses insustentável. Se havia escândalo, a responsabilidade não era apenas do eurodeputado e vice-presidente do PSD Paulo Rangel, era também da Cuatrecasas. São necessários dois para dançar o tango.

O eurodeputado e vice-Presidente do PSD, Paulo Rangel, ficou ofendido com o Presidente da Associação mecenática e a Cuatrecasas também, ambos se queixando à Justiça. O Ministério Público considerou haver indícios suficientes de crime na intervenção televisiva do Presidente da Associação mecenática e produziu acusação. Ele está agora a ser julgado em Tribunal pelos crimes de difamação (agravada) e ofensa a pessoa colectiva.

Uma fonte de inspiração.


Correcção: onde está "vice-presidente do PSD" deve estar "vice-presidente do PPE".

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