19 novembro 2017

enquanto é tempo

A reforma do sistema português (ou espanhol) de justiça criminal de modo a torná-lo democrático, conferindo-lhe uma natureza adversarial e não mais inquisitorial, passa, em primeiro lugar, por abolir a instituição que é a herdeira directa do Tribunal do Santo Ofício - o Tribunal de Instrução Criminal (Audiência Nacional, em Espanha).

Ao fazê-lo, desaparece a figura do juiz de instrução criminal, e o Ministério Público é transferido da esfera do poder judicial para a  esfera do poder executivo (v.g., como um departamento do Ministério da Justiça) (*).

O poder judicial passa então a ser constituído exclusivamente por quem deve - os juízes , que são quem faz Justiça - e não também, como agora, pelo Ministério Público que, sendo um órgão de acusação (prosecution), não tem por vocação fazer Justiça, mas simplesmente acionar um dos braços da Justiça - o da acusação.

Acaba a promiscuidade actualmente existente entre acusação e Justiça - uma promiscuidade cuja figura paradigmática é a do juiz de instrução, mas que se manifesta também na convivência diária entre magistrados e juízes na maior parte dos tribunais criminais, e que inclina os pratos da balança da Justiça em favor da acusação.

O mais importante, porém, é que o Ministério Público passa a responder perante o Ministro da Justiça, e este perante o público, acabando-se o regabofe em que actualmente vive e que  tenho descrito como o Diabo à Solta.

Neste caso, por exemplo - o da Operação Fénix, em que 31 dos 54 acusados eram, afinal, inocentes - , o Ministro da Justiça teria de responder perante o público à questão: "Explique lá como é que você anda por aí a criminalizar pessoas inocentes aos molhos?" e a pressão pública seria, em geral, suficiente para reconduzir o Ministério Público à sua missão - que é a de acusar pessoas que cometeram crimes, e não pessoas inocentes.

Restringindo a liberdade do Ministério Público, acabavam-se também aqueles mega-processos que levam anos de investigação, fazem grandes parangonas na comunicação social, e às vezes levam à constituição de centenas de arguidos mas que, em geral, não produzem condenações. Estou a pensar na Operação Marquês em Portugal, nos casos de alegada corrupção envolvendo membros do PP em Espanha (fala-se em 900 arguidos) ou na Operação Lava-Jato no Brasil.

Nada contribui tanto para desprestigiar a democracia nestes países aos olhos da opinião pública internacional e, mais importante ainda, aos olhos dos seus próprios cidadãos do que estes mega-processos que se arrastam durante anos na comunicação social e não conduzem a nada. São verdadeiras campanhas de propaganda contra o regime democrático.

Enquanto o Ministério Público permanecer o Diabo à Solta que é actualmente, ele constitui o maior cancro da democracia nestes países - ainda por cima países que, sendo de tradição católica, têm uma curta e frágil tradição democrática.

Não é certo que a democracia resista a este cancro indefinidamente. É preciso extirpá-lo enquanto é tempo.



(*) Existem outros modos de  institucionalizar o Ministério Público na esfera do poder executivo com diferentes graus de autonomia em relação ao Governo, mas não é este o tema que pretendo tratar aqui.


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