No caso dos crimes de papel, o primeiro contacto do cidadão com o Ministério Público ocorre quando ele recebe em casa ou no emprego uma convocatória intimando-o a comparecer no dia tal às tantas horas.
A partir deste momento o cidadão deve preparar-se para encaixar toda a espécie de abusos: ameaças, difamações, suspeições, angústias, intimidações, embaraços, incertezas e humilhações.
O primeiro está logo no envelope, que ostenta em letras gordas e negras o remetente: Departamento de Investigação e Acção Penal (que é um departamento do Ministério Público).
Tratando-se de um cidadão pacífico, a pergunta que imediatamente lhe ocorre é a seguinte: "Mas que é isto? Que crime é que eu cometi?".
Os familiares ou os colegas de emprego por cujas mãos a carta passou ficam a olhar para ele à espera de explicações. O patrão é capaz de ficar a pensar: "Mas em que sarilhos é que este anda metido?"
Mas ele fica embaraçado, não tem explicações para dar, porque a carta nada diz acerca do motivo da convocação. A angústia instala-se.
A convocatória apenas diz a data, a hora e o local onde deve comparecer, seguido de ameaças acerca do que lhe pode acontecer se não o fizer.
Pode conter uma menção enigmática da qualidade em que vai comparecer, por exemplo, "Denunciado", o que só lhe aumenta as dúvidas e as incertezas: Mas denunciado de quê e por quem?
A convocatória nada esclarece.
É frequente ser enviada com meses de antecedência, só para prolongar a angústia e a incerteza.
Se ao menos a convocatória dissesse o motivo da comparência, talvez o cidadão pudesse esclarecer aqueles que o rodeiam e moderar a sua própria angústia, já que o pior de tudo é a incerteza - "O que é que será?".
E, sobretudo, dava ao cidadão a possibilidade de preparar a sua defesa de maneira que, quando comparecer no DIAP, possa argumentar de forma articulada e coerente e apresentar provas da sua inocência.
Preparar a sua defesa?
Mas isso é precisamente aquilo que o Ministério Público não quer que o cidadão faça - preparar a sua defesa. Porque o Ministério Público é um órgão de acusação, de acusação do Estado contra os cidadãos. Ele está lá para acusar cidadãos, não para os defender, muito menos para lhes dar possibilidades de defesa.
Que o Ministério Público faça isto a um criminoso, aquele que mais tarde vem a ser condenado em tribunal, mal se pode aceitar, sobretudo se o crime não é grave. Ora, o Ministério Público não trata de crimes graves, mas somente de crimes de papel. Dos crimes verdadeiramente graves - homícidios, assaltos à mão armada, etc. - quem trata é a Polícia Judiciária.
Mas que o Ministério Público faça isto a um cidadãos inocente - aquele que, mais tarde, nunca será condenados em Tribunal - é uma violência intolerável numa sociedade democrática. E tem de acabar, se a cidadania democrática é para prevalecer no país.
2 comentários:
O problema de tudo isto, caro Pedro, é que supostamente, no Estado de direito, um cidadão não tem que se defender do que o acusam e quem acusa é que tem cabalmente de demonstrar a verdade da acusação. Por isso é que, no processo penal, um arguido pode não abrir a boca do princípio ao fim, prevalecendo, em teoria, a presunção de inocência. Porque, meu caro, a necessidade de um acusado se defender e demonstrar a sua inocência era o princípio inquisitório do velho Tribunal do Santo Ofício.
Se o pessoal do Tribunal do Santo Ofício viesse cá hoje diria: "Que engraçado...fizemos uma coisa que se viria a repetir séculos depois sob um regime laico e democrático..."
Pois é, Rui, o período do Tribunal do Santo Ofício foi um período limitado e excepcional da nossa História, ditado pela necessidade de proteger Portugal e a Igreja da ofensiva protestante (que causou milhões de mortos no norte e centro da Europa).
Ao passo que o regime democrático e laico - o Estado de Direito Democrático - é para ficar.
PA
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